24/09/2025 - 20:11
Quais mensagens explícitas e implícitas deixaram os líderes latino-americanos nas Nações Unidas, em um momento de fortes tensões regionais e globais?A 80ª Assembleia Geral da ONU ocorreu em meio a tensões diplomáticas e militares entre os Estados Unidos e a Venezuela, a uma crise diplomática entre os governos brasileiro e americano, bem como as guerras na Faixa de Gaza e na Ucrânia, entre outros conflitos regionais e globais. E teve ainda a ausência, de alguns líderes, como por exemplo, do presidente do Equador, Daniel Noboa, que permaneceu em seu país em meio a protestos contra a eliminação do subsídio ao diesel.
A América Latina aparece “como tem sido na última década: fragmentada, sem coordenação política e, portanto, enfraquecida nos fóruns internacionais”, observou Elayne Whyte, ex-vice-ministra do Exterior e ex-embaixadora da Costa Rica nas Nações Unidas, à DW.
A diplomata costarriquenha, porém, acredita que a maioria dos países latino-americanos concorda com a defesa dos princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas: a igualdade jurídica dos Estados, o respeito à independência política e à integridade territorial dos Estados, a proibição do uso e da ameaça da força e a não interferência nos assuntos internos de cada país.
Trump e sua “excelente química” com Lula
Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu o multilateralismo e o combate às mudanças climáticas e criticou duramente a política externa do presidente americano, Donald Trump, ainda que evitando mencioná-lo nominalmente, observou o cientista político alemão e especialista em América Latina, Peter Birle, diretor científico do Instituto Ibero-Americano de Berlim (IAI).
“Só gosto de fazer negócios com pessoas de quem gosto”, disse Trump em relação a Lula durante seu discurso antes de anunciar uma reunião com o brasileiro na próxima semana, o que já foi confirmado pelo Palácio do Planalto. “Tivemos uma excelente química”, acrescentou o americano ao se referir a uma conversa informal com Lula nos corredores da ONU. Para Birle, foi uma declaração “ridícula”, considerando as “posições diametralmente opostas” dos dois líderes. Isso explicaria por que o tema viralizou e virou meme no Brasil.
“Não sei se Trump está aos poucos entendendo que o Brasil não é o Panamá, no sentido de que sua chantagem não vai funcionar”, comparou amargamente o cientista político alemão. Ele se refere principalmente à imposição de tarifas com o objetivo de interferir no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro por conspiração golpista. “Nossa soberania e democracia são inegociáveis”, insistiu Lula perante a ONU. Para Birle, “Trump quer, de alguma forma, conter a China na América Latina. E isso, claro, sem se aproximar do Brasil, não vai funcionar”.
“Rigor e clareza” em relação à Venezuela
Lula também condenou perante a ONU os ataques dos EUA a barcos que transportavam civis no Caribe, chamando-os de “execuções extrajudiciais”. Ele criticou o uso de “força letal” fora de conflitos armados, defendendo a integridade territorial da Venezuela. Para Elayne Whyte, ele o fez com “rigor e clareza”, aderindo aos princípios fundamentais das relações internacionais. A diplomata, no entanto, lamentou que essa mesma clareza tenha faltado para defender um processo eleitoral mais transparente na Venezuela no ano passado.
Ela reiterou que o respeito aos direitos humanos é uma preocupação legítima da comunidade internacional, que autoriza a condução de investigações e a emissão de pareceres. “O Brasil poderia ter desempenhado um papel muito mais proeminente na definição de uma história diferente para o destino da Venezuela em 2024, em vez de dar tempo ao regime para consolidar o que hoje conhecemos como fraude eleitoral”, analisou Whyte, atualmente professora da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos..
Estilos diplomáticos diferentes
O presidente colombiano, Gustavo Petro, também criticou Trump adotando um estilo “mais conflituoso”, “mais ácido” e “menos institucional”, concordaram os especialistas. Ele denunciou a política antidrogas dos EUA, mencionou a necessidade de uma ação global contra a crise climática e condenou – assim como fez Lula repetidamente – o que chamou de “genocídio” na Faixa de Gaza.
Petro pediu a “união de exércitos e armas” para “libertar a Palestina”, com a formação de um “Exército de Salvação Mundial eleito pelas Nações Unidas e sem veto”. Para Birle, um proposta “bastante populista e irrealista, pelo menos neste momento”.
Em um estilo mais conciliador, o presidente chileno, Gabriel Boric, assim como seus colegas brasileiro e colombiano, fez suas críticas às políticas de Trump, também evitando mencioná-lo, mas chamando a negação do presidente americano sobre as mudanças climáticas perante a ONU de uma “mentira” que “devemos combater”.
“Hoje, o mundo precisa de vozes fortes e claras que defendam o compromisso com a democracia, sempre, sem nuances, sem desculpas”, disse Boric, incluindo em suas críticas, como de costume, o autoritarismo de esquerda na região, observou Birle.
“Amigos” de Trump na América Latina
O diretor do Instituto Ibero-Americano em Berlim destacou que, do outro lado da moeda, com “alinhamento incondicional com os Estados Unidos”, aparecem os “amigos de Trump” na região: o presidente da Argentina, Javier Milei, e o de El Salvador, Nayib Bukele.
Milei, também alinhado a Israel e com um estilo igualmente confrontacional, “criticou as Nações Unidas ainda mais duramente do que o próprio Trump”, avaliou Birle.
Enquanto isso, o Tesouro dos EUA anunciou uma linha de financiamento temporária (linha de swap) com o Banco Central Argentino de 20 bilhões de dólares (R$ 106,5 bilhões).
Uma latino-americana como secretária-geral da ONU?
Nesse contexto, os chanceleres da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) emitiram uma declaração conjunta apoiando que o sucessor do atual secretário-geral da ONU, o português António Guterres, seja da região, em conformidade com o princípio do “equilíbrio geográfico equitativo” e do “fortalecimento da diversidade”.
O mesmo recado foi dado pela presidente peruana Dina Boluarte e seu homólogo chileno Boric, que apresentaram oficialmente a candidatura da ex-presidente do Chile Michelle Bachelet para secretária-geral da ONU. “Este é o momento para a América Latina e o Caribe. Somos uma região sem guerras, com uma rica tradição diplomática, uma forjadora de consensos e um compromisso inabalável com a Carta das Nações Unidas desde a sua fundação”, afirmou.
O nome de Bachelet vem sendo ventilado nos últimos meses como uma possível candidata, juntamente com a ex-vice-presidente costarriquenha Rebeca Grynspan – mais favorecida pelos Estados Unidos – e a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley. Desde a sua fundação, em 1945, a ONU jamais teve uma mulher à frente, algo que Boric também enfatizou. Além disso, apenas um latino-americano ocupou a secretaria-geral da entidade: o peruano Javier Pérez de Cuéllar, de 1982 a 1991.
Em resposta a essas e outras críticas à ONU, a diplomata e acadêmica costarriquenha Elayne Whyte ressaltou que “as Nações Unidas não são uma entidade independente, mas apenas uma estrutura para a ação coletiva dos Estados. Portanto, o que as Nações Unidas são ou deixam de ser, simplesmente, é um reflexo daquilo com que os Estados concordaram”.