Tomou o mercado de surpresa (negativa) a proposta do governo de revisão do marco do saneamento básico, certamente uma das grandes conquistas dos últimos tempos, que pode retroceder caso se leve realmente adiante a ideia de não mais abrir, na dimensão esperada, o setor à iniciativa privada. É de lamentar que um país no qual boa parte da população ainda viva sob os efeitos deletérios de moradias com esgoto a céu aberto não se entenda a vital necessidade de novos investimentos que efetivamente o Estado não está conseguindo bancar nesse campo. Há de se perguntar: de que é movido o conceito ideológico daqueles que pensam que o setor público pode tudo, inclusive e especialmente no plano de recursos para projetos empresariais que poderiam estar facilmente sendo bancados e explorados por aqueles que detêm o capital? As privatizações voltaram a ser questionadas e a gestão Lula, mesmo com inúmeros desafios para cobrir o déficit público monstro, parece insistir no surrado conceito de administração estatizante. Acaba de liberar por decreto mais R$ 120 bilhões em investimentos no saneamento. É um bom dinheiro, mas uma gota no oceano de demandas e, o que é pior, verba sem ter de onde tirar. O mecanismo das parcerias público-privadas (PPPs) ainda constitui importante caminho para amenizar parte do problema. Mas existem erros de origem no que está desenhado. A possibilidade de prestação do serviço de água e esgoto e de contratação de limpeza urbana sem a necessidade de licitação é um deles. Existe também a chance de mudança da Agência Nacional de Águas (ANA) como reguladora do setor. Os decretos de Lula no âmbito do saneamento definitivamente não agradam. A permissão para que diversas estatais que desrespeitaram prazos anteriores do novo marco legal possam voltar a operar sem licitação não encontra justificativa alguma, representando uma mera e perigosa anistia que pode causar novos descumprimentos e consequências danosas lá na frente. Flexibilizar o marco legal é flertar com males crônicos do passado que vinham sendo reparados. A boa e legítima concorrência está sendo afrontada. É fato que os ajustes trazidos pelos novos decretos permitirão que cerca de 1.113 municípios passem a acessar recursos do saneamento básico para cumprir as metas de universalização, mas isso será feito quebrando regras elementares de eficiência e gestão adequada. Segundo as normas atuais, esses municípios, que reúnem quase 30 milhões de brasileiros, tiveram seus contratos com os prestadores estaduais declarados irregulares, por motivos diversos, e, por isso mesmo, não estavam habilitados a receber verbas federais enquanto não regularizassem a situação. Foi dado agora um salvo-conduto para que diversas empresas estatais que desrespeitaram prazos anteriores possam, assim mesmo, sacar novos aportes. Críticos da praça falam em premiar a ineficiência, desestimulando quem vinha fazendo o seu trabalho corretamente. Além de trazer uma flexibilidade maior para contratos irregulares — alguns vencidos e outros comprovadamente inexistentes — o processo pode desarrumar a uniformização regulatória do Marco e a competitividade setorial. É um tiro errado em todos os sentidos e uma volta atrás no tempo para um cenário em que estatais obtinham contratos sem concorrência e sem ter de prestar contas por seus erros.

Carlos José Marques
Diretor editorial