02/09/2025 - 8:15
A adultização aparece em comportamentos e exigências que antecipam a vida adulta das crianças e vai além da exposição nas redes sociais.Quando tinha 13 anos, Manuela Garbugio decidiu compartilhar nas redes sociais o presente que havia acabado de ganhar dos pais. A ideia foi fazer um vídeo mostrando a abertura do brinquedo e também como usá-lo. O brinquedo em questão era uma cauda de sereia.
“Essa cauda você vestia no corpo para nadar como uma sereia. Eu quis fazer um vídeo abrindo meu presente e depois nadando com ela na piscina. Eu queria compartilhar aquele meu momento de alegria com as minhas amigas”, conta.
Na época, a estudante, que hoje tem 21 anos, tinha um canal no YouTube onde compartilhava viagens, presentes que ganhava e fazia trends do momento. Tudo era gravado e postado com a supervisão dos pais e tinha como seguidores apenas amigos da escola.
Porém, dois anos depois da publicação, o vídeo em que Manuela aparecia usando o brinquedo viralizou e teve mais de 100 mil visualizações. “Achei estranho o vídeo ganhar destaque tanto tempo depois de ser postado, mas fiquei feliz e me senti famosa”, recorda.
O sentimento mudou dias depois quando a estudante percebeu que seu conteúdo estava ganhando visibilidade por estar sendo compartilhado em redes de pedofilia. No mesmo dia, ela removeu o vídeo nas redes sociais.
“Para mim era um vídeo inocente, mas em alguns momentos eu aparecia de biquíni, nadando com a cauda de sereia. O vídeo começou a ter muitos comentários indicando os minutos em que essas imagens apareciam. Na época, eu fiquei muito impactada, são coisas que a gente só vê na TV, nos jornais e eu não imaginava que poderia acontecer comigo”, diz a estudante.
Quando esse episódio aconteceu, Manuela já fazia acompanhamento psicológico e as consequências emocionais foram tratadas imediatamente. Além de apagar o conteúdo, a estudante recorda que também deixou de compartilhar fotos ou vídeos que expusessem seu corpo de alguma maneira. “Eu percebi que as pessoas têm más intenções e a partir do momento que postamos algo na internet não sabemos onde esse conteúdo vai parar e com que olhos as pessoas vão ver aquilo”, diz.
Mesmo sempre sendo acompanhada pelos pais e tendo os conteúdos consumidos fiscalizados de perto por eles, a estudante considera que as redes sociais fazem mal, independentemente do tipo de conteúdo que você consome. Além disso, a jovem mudou completamente a forma como enxerga a exposição de crianças no universo online. O que era para ser apenas uma lembrança da adolescência virou prova de que a inocência pode ser facilmente distorcida no ambiente digital.
“A rede social faz muito mal. Eu tenho que de vez em quando parar um pouco, apagar o Instagram, ficar um tempo fora das redes, porque é uma um ambiente muito tóxico que você tem que aprender a filtrar muito o conteúdo e também os comentários que vê. Quando você é criança, você não tem esse tipo de filtro e tudo pode te afetar muito”, acrescenta.
Adultização vai além das dancinhas nas redes sociais
A exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais chamou a atenção de grande parte da sociedade recentemente após o influenciador digital Felca publicar um vídeo denunciando canais que se utilizam de imagens sexualizadas de menores de idade para ganhar dinheiro. Essa erotização precoce recebe o nome de adultização.
No entanto, a adultização não está relacionada somente à exposição nas redes sociais. Ela também acontece quando expectativas e comportamentos típicos da vida adulta são impostos às crianças antes do tempo, como uso de roupas inapropriadas, maquiagens e até mesmo a criação de uma agenda cheia de compromissos.
“A adultização é quando a criança passa a assumir comportamentos, responsabilidades ou aparências que não condizem com a sua idade. Isso acontece, por exemplo, quando ela é estimulada a usar roupas sensuais, maquiagens e acessórios que imitam o universo adulto. Esse tipo de prática passa a mensagem de que o valor da criança está na aparência e na sexualização precoce, quando na verdade a infância deveria ser marcada pelo brincar, pela criatividade e pelo desenvolvimento saudável”, explica Tamiris Mariano, neurologista infantil.
Esse processo de adultização também envolve expectativas de maturidade que não condizem com a idade. É comum que crianças sejam cobradas a “agir como adultos”, a reprimir brincadeiras consideradas infantis cedo demais ou a assumir responsabilidades emocionais para as quais não estão preparadas.
Esse tipo de cobrança, muitas vezes naturalizada no ambiente familiar ou escolar, pode comprometer etapas fundamentais do desenvolvimento infantil, como a criatividade, a socialização e a construção da identidade.
“Quando a rotina da criança é estruturada apenas em compromissos, sem espaço para brincar, descansar ou simplesmente não fazer nada, ela acaba sendo submetida a um ritmo semelhante ao de um adulto. A infância precisa de tempo para a imaginação, a criatividade e uma rotina saudável. É importante lembrar: o brincar é essencial para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social”, explica Lígia Vezzaro Caravieri, psicóloga e gerente técnica da ONG Ficar de Bem.
Esse processo de adultização também pode acontecer de outras maneiras consideradas ‘inofensivas’ e que até muito pouco tempo atrás eram vistas como normais pela sociedade brasileira, como tornar a criança responsável por cuidar dos irmãos mais novos ou até mesmo ajudar financeiramente.
Regras ignoradas
E no aspecto financeiro, mais uma vez entram as redes sociais e o universo online. Não é difícil encontrar crianças e adolescentes que são monetizados pelos conteúdos criados, ou seja, que recebem pelos vídeos postados em seus canais. São os chamados influenciadores mirins ou coaches mirins.
Muitos desses conteúdos, inclusive, minimizam a importância do estudo e enfatizam a ideia de um trabalho fácil nas redes sociais, com bons lucros. Assim, muitas dessas crianças desencorajam seus seguidores a estudarem e os incentivam, muitas vezes, a seguirem seus passos.
“Tem todo um conjunto de condições muito específicas para autorizar o trabalho infantil no Brasil, no entanto quando a gente vai para o ambiente digital, temos essas regras ignoradas. Então, não faz sentido só na internet não ter essas condicionantes”, diz Rodrigo Nejm, coordenador do Eixo Digital e Especialista em Educação Digital do Instituto Alana.
No Brasil, a idade mínima permitida para o trabalho é de 16 anos e na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Há exceções como a autorizações para o trabalho, antes da idade mínima permitida, para a participação em representações artísticas, como em novelas, filmes e comerciais. Essas autorizações são concedidas por autoridade judicial de maneira individual, não se admitindo autorizações genéricas. Além disso, devem ser estabelecidas as condições em que o trabalho é permitido e limitado o número de horas de trabalho.
Já quando o assunto é trabalhar com redes sociais ou de maneira online não há nenhuma especificação de como ele deve ser feito no caso de crianças e adolescentes.
Como deixar as crianças e adolescentes longe das redes
Pular etapas não é saudável, já que o nosso cérebro evolui conforme nos desenvolvemos. O córtex pré-frontal, região do cérebro responsável pela tomada de decisões e pelo pensamento racional, só se desenvolve completamente entre os 20 e os 25 anos. Isso significa que até essa idade ainda não estamos preparados para lidar com pressões, tarefas e emoções que não são adequadas para crianças e adolescentes.
Além da exposição, há os efeitos emocionais em crianças que são expostas à adultização, independentemente da forma que ela ocorra – nas redes sociais ou longe. Pulando a fase lúdica da infância ou sobrecarregadas com tarefas, elas começam a ficar mais irritadas, cansadas e reativas.
“Às vezes as crianças estão muito abatidas, não querem brincar ou fazer atividades prazerosas. Elas preferem ficar largadas no sofá, porque estão muito sobrecarregadas e muito cansadas. Ou então, não querem brincar porque só querem ficar no celular”, diz Danielle Admoni, psiquiatra geral e psiquiatra da infância e adolescência, supervisora na residência de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) e especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
No entanto, fazer com que as crianças e adolescentes passem menos tempo nas redes sociais não é tarefa fácil e esse afastamento das telas deve começar pelos pais. Pesquisa feita pela TIC Kids Online Brasil mostra que aproximadamente 22,3 milhões de usuários no Brasil são crianças e adolescentes. Dados da agência de comunicação We Are Global colocam o Brasil em segundo lugar no tempo gasto em redes sociais, com uma média de 9h13 semanais, ficando atrás somente da África do Sul, com 9h24, segundo o relatório Digital 2024.
“Crianças e adolescentes percebem quando os pais também estão viciados nas telas. Um detox digital precisa ser vivido em conjunto, mostrando que a desconexão vale para toda a família. E planejar essas desconexões progressivamente, começando com pequenas pausas, como uma noite por semana, todo mundo sem telas, até se tornar um hábito. Isso evita a frustração e aumenta as chances de sucesso”, diz Mariano.
Outra estratégia prática é propor atividades presenciais que substituam o hábito de rolar o feed. Caminhadas ao ar livre, jogos de tabuleiro ou até mesmo um passeio de bicicleta podem servir como alternativas de lazer.
“Pintar, tocar instrumentos, dançar, ler e praticar esporte. Essas atividades, dão prazer e estimulam a criatividade e reduzem naturalmente o tempo de tela, porque elas ocupam a criança, o adolescente e o adulto, de forma saudável ajudando a desenvolver novas habilidades”, acrescenta a neurologista infantil.
E por fim, organizar a rotina com tarefas bem definidas também ajuda a reduzir a dependência digital. Ao planejar os estudos, o tempo de descanso e as atividades de lazer, as crianças e adolescentes ganham clareza sobre a importância de equilibrar responsabilidades e diversão. A ideia, segundo os profissionais, não é eliminar totalmente o uso das redes, mas recuperar o controle sobre quando e como elas são utilizadas.
“Aqui entra o ponto mais difícil. Tempo livre não pode ser sinônimo de tempo em frente à tela. Muitos pais lotam a agenda dos filhos para evitar que eles passem o dia no celular. Mas o desafio é criar tempo livre verdadeiro, com estímulos de qualidade, como brincar com amigos, desenvolver hobbies criativos, explorar a natureza ou simplesmente estar em famílias sem telas. Essas experiências nutrem o cérebro infantil muito mais do que qualquer curso extra ou vídeo da internet, além de fortalecer vínculos e memórias afetivas”, finaliza Mariano.