31/05/2006 - 7:00
“Não é certo o povo pagar para formar um economista que no outro dia vai trabalhar no FMI”
DINHEIRO ? O sr. tem vinculado a necessidade de reforma universitária à mudanças na educação básica….
CRISTOVAM BUARQUE ? A universidade precisa estar comprometida com a educação básica. Se a educação básica não for boa, os alunos da universidade não serão totalmente bons. A universidade que quer ser boa tem de lutar para que todos os alunos terminem o ensino médio.
DINHEIRO ? Por quê?
BUARQUE ? Se todo menino terminasse o ensino médio e a qualidade da escola pública mudasse, a gente ia multiplicar por seis o número de candidatos no vestibular. Seria exatamente o que acontece com a seleção brasileira de futebol. Ela é boa porque todo menino joga bola quando é pequeno. A gente tem geniais craques vindo dos pobres. Na Ciência, no Brasil, nem todos têm a mesma oportunidade. Tem menino que nunca viu um computador e que deixou a educação antes de aprender Matemática. Entre eles podiam estar alguns Ronaldos, podiam estar alguns Ronaldinhos da Ciência. Os nossos Ronaldinhos da Ciência são impedidos de ?jogar? por falta de livros, de computador, de bons professores e de atrativos. A universidade tem de adotar a educação básica como uma coisa que interessa a ela. Tenho certeza de que já tivemos uns três ou quatro Prêmios Nobel de Literatura no Brasil. Só que eles morreram antes de aprender a ler.
DINHEIRO ? Como a sua proposta ajudaria a problemas como o da violência que estamos vivendo em São Paulo?
BUARQUE ? Na universidade de hoje, o aluno fica com medo dos ataques do PCC até entrar no campus. Quando ele entra no campus, já esquece a crise, está em outra realidade. Em situações como essa, é preciso que a universidade abrace o tema. Cabe à academia entender o lado social da violência, embora esteja nos políticos o poder de aplicar as soluções. O erro da violência não é agora e não é São Paulo. Essa violência, antes de ser PCC, era dos PEs, os proprietários de escravos. Essa é uma sociedade violenta, que é violenta na escravidão, é violenta nas ditaduras, é violenta no apartheid social e é violenta na perversidade de bandidos. Eu não estou dizendo que a gente passe a mão na cabeça de bandidos, mas tem de se entender por que a sociedade é violenta. Tem de quebrar a violência intrínseca que está no DNA e fazer uma mutação social no Brasil. Ao mesmo tempo, tem de botar bandido na cadeia. Tem de trazer para a União o centro do problema e da responsabilidade.
DINHEIRO ? O crime, como a educação, também evoluiu?
BUARQUE ? O crime se globalizou com mais competência do que a polícia. É inacreditável que os bandidos hoje tenham um sistema de informações sobre o que acontece na polícia mais eficiente do que o sistema que a polícia tem dos bandidos.
DINHEIRO ? Uma de suas propostas mais polêmicas diz respeito ao conceito de universidade pública e privada. Qual é o modelo que o sr. defende?
BUARQUE ? O conceito de escolas públicas e privadas não pode ser mais com base na propriedade do estabelecimento de ensino, mas sim no produto que o aluno adquire na universidade. Se a profissão a ser exercida é de interesse público, o Estado tem de bancar a formação mesmo que o aluno esteja numa universidade particular. Quem quiser ser professor nesse País não tem de pagar para estudar. Do mesmo modo que não é certo o povo brasileiro pagar uma fortuna para formar um economista, que no outro dia faz um concurso e vai trabalhar no FMI, prejudicando os interesses do País.
DINHEIRO ? Um aluno de administração que tenha planos de trabalhar no mercado financeiro e que estude numa universidade pública teria de pagar por seus estudos?
BUARQUE ? Se vai servir a carreira financeira tem de pagar. Ele está investindo nele mesmo.
DINHEIRO ? E o meio acadêmico vai aceitar isso?
BUARQUE ? Toda reforma aceita facilmente é insuficiente e supérflua. As propostas do governo Federal, por exemplo, não encontram resistência porque foram feitas apenas para beneficiar a comunidade acadêmica e não para mudar a universidade. O governo Lula trabalha atendendo ao interesse das corporações, sem ter uma proposta de longo prazo e sem considerar a dimensão global do País. O Brasil tem uma alma e o Lula não entendeu essa alma, nem a dimensão da permanência e da totalidade do País e da universidade. O projeto da reforma terá muita resistência porque os jovens, de esquerda sobretudo, trabalham com o preconceito de que estatal é sinônimo de público. Sabe de onde vem isso? Da visão aristocrática do Brasil. A minoria privilegiada do Brasil pensa que seus interesses são os interesses nacionais, sempre. Os universitários acham ? e eles são a elite ? que, atendendo aos universitários, está se atendendo ao Brasil. Só que esquecem que há 15 milhões de analfabetos.
DINHEIRO ? O sr. tem pregado o conceito de Pós-Universidade. O que é isso?
BUARQUE ? Antigos geradores do conhecimento na Idade Média, os conventos não foram capazes de se adaptar às mudanças no pensamento que ocorreram há cerca de mil anos, quando se demandava o conhecimento laico. Surgiu então o Pós-Convento que foi a universidade. Hoje, está se falando em reforma universitária e essa reforma não vai conseguir colocar a universidade no passo com as mudanças que ocorrem no mundo. Vai surgir uma outra instituição diferente, a qual chamo de Pós-Universidade.
DINHEIRO ? Quais são as demandas exigidas hoje pela sociedade e que as universidades não estão sendo capazes de abraçar?
BUARQUE ? Se a universidade não for capaz de se adaptar à velocidade com que o conhecimento avança, ao fato de que ele é hoje multidisciplinar, que fica obsoleto muito rapidamente e que se distribui instantaneamente, sem ser mais necessário a presença numa sala de aula, vão surgir novas instituições, como já estão surgindo. Um exemplo são as universidades corporativas, que já são realidade e podem ser um passo para uma Pós-Universidade.
DINHEIRO ? A Pós-Universidade é então inevitável?
BUARQUE ? A Pós-Universidade é uma provocação para estimular intelectualmente e criar um debate em torno do projeto de reforma universitária, que também é bastante polêmico.
DINHEIRO ? O sr. escreveu, no entanto, que está há 40 anos tentando reformar a universidade e acredita que dificilmente ela será feita.
BUARQUE ? Ainda há tempo de a universidade se reciclar e se adaptar a essa nova realidade, até porque ela já fez isso no passado. Até a Revolução Industrial, a universidade era voltada a bacharéis e estudava apenas Filosofia, Direito. Com a Revolução Industrial, as escolas de engenharia foram absorvidas pelas universidades. Napoleão Bonaparte, por exemplo, criou escolas fora da universidade e deixou a Sorbonne de lado porque ela não oferecia o que se precisava à época. Já a Inglaterra conseguiu trazer esses departamentos para dentro de Oxford e Cambridge. Mas tanto acredito que essa reforma possa ser feita que a apresentei ao Senado.
DINHEIRO ? Qual é sua proposta de reforma universitária?
BUARQUE ? São muitas. Do ponto de vista da estrutura da universidade, a instituição tem de deixar de ser prisioneira de departamentos e criar núcleos multidisciplinares, que trabalhem com o cruzamento de várias áreas do conhecimento, bastante comum no mundo de hoje. Outra mudança é a diminuição no número de anos para se formar. É possível com dois anos colocar no mercado um professor de Geografia ou de Matemática, com um diploma parcial. Ele continua trabalhando e estudando e, depois de mais dois anos, recebe outro diploma. Se continuar no mestrado recebe outro diploma. Ao mesmo tempo em que o diploma pode ser obtido num prazo mais curto, é preciso também entender que os diplomas não podem durar por toda vida e precisam ter prazo de validade. Isso faz com que o curso seja permanente ao longo da vida do profissional. Hoje, essa atualização é feita fora da universidade por imposição do mercado de trabalho mas a universidade não está atenta a isso.
DINHEIRO ? A proposta de educação continuada é viável? Haverá espaço, recursos financeiros e interesse para que seja possível estudar a vida inteira?
BUARQUE ? Sim, o aluno não precisará nem voltar à universidade, sendo continuamente educado pela internet. Se for uma escola privada, o aluno continuará pagando, mas uma ninharia. Os empregadores já têm essa demanda pela formação contínua. Quando um engenheiro está superado, ele é mandado embora. O médico que não está atualizado não tem clientes. O mercado já faz isso e a universidade está ficando para trás.