O presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que a Controladoria-Geral da União (CGU) reavalie os casos postos sob sigilo de 100 anos durante o governo de seu antecessor, Jair Bolsonaro. A CGU deverá avaliar se leis foram desvirtuadas para ocultar o que deveria ser público.

A Lei de Acesso à Informação garante o sigilo de informações pessoais de cidadãos privados ou de informações que comprometam a segurança da sociedade ou do Estado. Seu Artigo 31 permite o sigilo de “até” 100 anos para informações de caráter pessoal referentes à “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas”.

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O governo Bolsonaro, porém, usou inúmeras vezes o prazo máximo de 100 anos, e também para informações ligadas ao governo federal. Especialistas em transparência veem abuso nessas decisões. Levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o sigilo de 100 anos foi aplicado em pelo menos 65 casos cujas informações deveriam ser públicas.

O ministro da CGU, Vinícius Marques de Carvalho, afirmou nesta terça-feira (03/01) que “houve uso indiscriminado e indevido do sigilo para supostamente proteger dados pessoais ou sob o falso pretexto de proteção da segurança nacional e da segurança do presidente da República”.

A situação será, portanto, revista pelo novo governo. O caminho mais adequado seria reavaliar cada caso, como Lula solicitou à CGU. A própria Lei de Acesso à Informação já prevê, no Artigo 29, que a decisão sobre o sigilo pode ser revista “com vistas à sua desclassificação ou à redução do prazo de sigilo”. Não haveria necessidade de um decreto presidencial para tal. As revogações dependeriam de um amplo processo de revisão por parte da CGU.

Os sigilos de 100 anos tampouco foram “decretados” por Bolsonaro. Eles são negativas apoiadas em leis (em especial a Lei de Acesso à Informação) que, na opinião de especialistas, foram usadas de forma abusiva.

Outro dispositivo invocado em alguns casos de sigilo foi a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP). Ela protege a privacidade de dados pessoais que não sejam de interesse público. Especialistas explicam que ela existe pra proteger o cidadão da ação do Estado e não para blindar pessoas públicas, que têm o dever da transparência.

Alguns dos casos mais polêmicos e que podem agora ser reavaliados:

Cartão de vacinação

O mais famoso de todos os sigilos impostos por Bolsonaro é o que se refere ao cartão de vacinação dele. O caso é ainda mais estranho porque Bolsonaro nunca escondeu o que pensa sobre as vacinas contra a covid-19.

O ex-presidente declarou que não se vacinaria e até fez piada com quem pretendia fazê-lo. Tanto mais estranho, portanto, que ele se recusasse a mostrar o cartão de vacinação.

Quando a revista Época pediu para ver o documento, com base na Lei de Acesso à Informação, recebeu resposta negativa. A Presidência da República argumentou que o cartão de vacinação se enquadra no caso de informação que diz respeito à “intimidade, vida privada, honra e imagem” e, por isso, as informações não seriam repassadas.

Crachás dos filhos

Outro pedido negado pelo governo, dessa vez feito pela revista Crusoé, foi para ver os dados dos crachás de acesso de dois filhos de Bolsonaro, Carlos e Eduardo, ao Palácio do Planalto.

Novamente, a justificativa foi de que se trata de informação que diz respeito à “intimidade, vida privada, honra e imagem” de familiares do presidente.

Segundo a revista, Carlos Bolsonaro, que é vereador no Rio de Janeiro, esteve 32 vezes no Palácio do Planalto, em Brasília, entre abril de 2020 e junho de 2021. Ele teria livre acesso ao gabinete da Presidência da República.

Processo de Pazuello

O sigilo de 100 anos também beneficiou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Em junho de 2021, o Exército colocou sob sigilo o processo contra o general, que na época estava na ativa e participara de um ato público com Bolsonaro no Rio de Janeiro. Militares da ativa não podem participar de manifestações políticas.

No caso de Pazuello, a negativa argumenta que a divulgação representaria risco aos princípios da hierarquia e disciplina militares.

Ronaldinho e médico bolsonarista

No início de 2020, o ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho foi preso no Paraguai por apresentar documentos falsos ao entrar no país. O Itamaraty agiu para libertar o ex-jogador, que havia sido nomeado embaixador do turismo brasileiro. As mensagens trocadas entre o Itamaraty e o jogador e o irmão dele, Assis, também estão sob sigilo de 100 anos.

O mesmo sigilo vale para o caso do médico bolsonarista Victor Sorrentino, que em 2021 foi detido no Egito sob a acusação de assediar uma vendedora.

Visitas a Michelle

Também estão sob sigilo de 100 anos as visitas que a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada. O argumento, mais uma vez, é que há informações pessoais nos documentos.

“Rachadinhas”

Igualmente sob sigilo de 100 anos estão as investigações das suspeitas de”rachadinha” no gabinete do senador Flávio Bolsonaro, quando ele ainda era deputado estadual no Rio de Janeiro. Mais uma vez a argumentação, desta vez apresentada pela Receita Federal, é de que há informações de cunho pessoal nos processos.

Pastores lobistas

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) também usou o sigilo de 100 anos para os polêmicos encontros entre o então presidente e pastores evangélicos lobistas acusados de intermediar a liberação, para prefeituras, de recursos do Ministério da Educação, na época encabeçado por Milton Ribeiro.

Novamente a imprensa solicitou informações. No caso, o jornal O Globo queria saber sobre os registros de entradas e saídas dos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura do Palácio do Planalto. O GSI negou o pedido com a justificativa de que a informação poderia colocar em risco a vida de Bolsonaro e familiares.

Nesse caso foram usados os artigos 6 e 7 da Lei Geral de Proteção de Dados. O sigilo, porém, durou apenas um dia, sendo logo derrubado pelo GSI a pedido da Controladoria-Geral da União.

Moura esteve 35 vezes no Palácio do Planalto de janeiro de 2019 a fevereiro de 2022. Santos o acompanhou em dez vezes. Os dois são acusados de pedir propina para prefeitos em troca de fazer lobby pela liberação de recursos, no que ficou conhecido como o escândalo do balcão de negócios do MEC.