A cor, um vermelho quase violeta, seduz o olhar. O sabor, encorpado mas com final adocicado, surpreende mesmo os mais profundos conhecedores. O perfume, uma mistura de frutas, amêndoas e, por vezes, madeira, lhe garante uma posição particular em uma categoria marcada pelo refinamento. Sua consistência quase licorosa deixa lágrimas de álcool nas paredes do copo. ?São lágrimas de emoção, assim como no fado?, descrevem alguns portugueses mais chegados à poesia. A soma de percepções e sentimentos faz do vinho do Porto uma bebida singular, muitas vezes imitada e nunca igualada. A conjunção de características geográficas, climáticas e geológicas deu a Portugal (e dentro dele à região do Douro) condições únicas para a produção desse vinho venerado há séculos pelos ingleses e cada vez mais apreciado em outros países do mundo, como França e Estados Unidos. O solo de xisto permite a penetração profunda das raízes em busca dos nutrientes. Os ventos que sopram do Atlântico e o clima seco garantem as condições climáticas ideais para o cultivo de uvas de nomes curiosos, como tinto cão, tinta barroca e touriga nacional.

A estrada que une o mundo do
vinho do Porto é o Douro, o rio de águas calmas que nasce na Espanha, corta Portugal de leste a oeste e deságua no Atlântico. Ao longo de suas margens, situam-se as quintas das mais famosas grifes da bebida, como Adriano Ramos Pinto, Taylors, Dow?s, Ferreira, Crasto e Sandeman. Há ainda hotéis e pousadas, digamos, temáticos sempre associados à bebida. É um passeio por uma
história milenar. O Vintage House, por exemplo, uma construção do século 18 transformada em um hotel de apenas 37 apartamentos, mantém o Library Bar, um salão em estilo vitoriano. Ali os hóspedes podem apreciar taças de porto, enquanto consultam uma ampla biblioteca dedicada ao assunto. Mensalmente, um curso de culinária desvenda os mistérios das melhores combinações entre os vários tipos de pratos da cozinha portuguesa e os vinhos tintos e brancos (os portos, em particular). Em novembro, o tema será cogumelos. A Academia do Vinho, outro serviço do Vintage House, oferece degustações de 25 diferentes marcas do porto e revela as ocasiões indicadas para bebê-los.

É uma ótima oportunidade para entender o que difere o porto dos vinhos de mesa. Além das condições físicas da região, o processo de fermentação, ou seja, a transformação do açúcar da uva em álcool, também é singular. Em certo momento, a fermentação é interrompida com a adição de uma aguardente feita à base de uva, o que
garante um teor alcoólico de cerca de 20% ao porto. Com a mistura, parte do açúcar não se transforma em álcool, tornando a bebida mais doce do que os demais vinhos. As etapas seguintes, o engarrafamento e o envelhecimento, criam quatro categorias de vinho do porto. O Ruby e o Tawnay são longamente envelhecidos em tonéis de carvalho francês ou de metal e engarrafados depois de no mínimo seis anos. Mais doces e indicados como vinhos de sobremesa, são resultado da mistura de diversos tipos de uva e safras. O blend é definido por um enólogo, artista do sabor e do perfume, com uma metáfora. ?É como tocar piano?, diz João Nicolau de Almeida, diretor geral da Ramos Pinto, uma das mais conhecidas fabricantes. ?As teclas são sempre as mesmas. A arte está em uni-las de forma harmoniosa.? Já os LBV, Late Bottled Vintage, são vinhos criados a partir de uma única colheita e engarrafados depois de quatro a seis anos da fabricação. Nenhum tipo, porém, possui o esmero do Vintage. Trata-se de um vinho produzido apenas em safras consideradas excepcionais pelas próprias vinícolas ? o que deve ser chancelado pelo Instituto do Vinho do Porto, o órgão do governo português responsável pela regulamentação desse setor. Seu engarrafamento ocorre dois anos depois da fabricação. O envelhecimento ocorre na própria garrafa, onde deve repousar por no mínimo 12 anos, segundo os especialistas mais exigentes. Assim que aberto deverá ser consumido no mesmo dia.

O Vintage é o porto com maior interferência humana, garante Almeida. Em algumas vinícolas, como a Ramos Pinto, as uvas ainda são esmagadas em enormes tanques, chamados lagares, pelos pés de homens, em geral trabalhadores das próprias vinhas. A decisão de produzir um Vintage (ou não) cabe aos enólogos e deve ser tomada pouco antes da colheita da uva. Há critérios para isso, mas a dose de subjetividade é enorme. Por fim, cabe ao consumidor decidir se o toma jovem ou o deixa envelhecer na garrafa, como preferem os especialistas. ?É o mais humano dos vinhos?, diz Almeida.

A declaração de amor de Almeida perde qualquer dose de exagero, quando se conhece a trajetória dos produtores. Não há neófitos nesse mundo. Todos possuem uma ligação telúrica com a região. O vinho corre em suas veias. O próprio Almeida é descendente direto de Adriano Ramos Pinto, uma lenda no universo do vinho do porto. Ramos Pinto criou sua vinícola para atender exclusivamente o Brasil. Até hoje, os brasileiros utilizam o nome Adriano como sinônimo da bebida.

Outra personagem desse mundo é Maria Manuel Cyrne, descendente de uma família com 800 anos de história. Da época da realeza, ainda guarda dois títulos: Condessa da Feira e Viscondessa de Vila Nova de Souto Del Rei. Maria garante que entre seus avós está um certo Pedro Álvares Cabral. O fundador e primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, recebeu parte de sua educação formal na propriedade da família, situada na região de Lamego, uma das mais antigas povoações de Portugal.

Foi ali que Maria escreveu sua saga pessoal. Contada em detalhes, ganha ares de conto de fadas. Logo depois da Revolução dos Cravos, em 1974, a família vendeu suas terras para evitar a expropriação pelo governo de linha comunista. A partir dali, todo seu trabalho visava apenas recuperar a quinta Viscondes da Várzea. Maria criou uma rede de lojas de roupas de luxo, acumulou uma pequena fortuna e, há sete anos, realizou seu sonho: readquiriu a propriedade de 180 hectares e ?gastou os últimos tostões?, como diz, em sua restauração. Ao final das obras, ela se transformara em uma charmosa pousada de apenas 20 cômodos. A decoração inglesa segue o estilo definido pela família há séculos: cortinas de seda, lareiras revestidas com mármore de Carrara e pinturas do século 18. O cardápio é composto por receitas do clã, como uma divina açorda de bacalhau ao forno recheada com ovos e perdizes estufadas com bacon (ou toucinho, como preferem os portugueses). Poderiam, aliás, ser comidos de joelhos. A casa, uma construção do século 18, é cercada por vinhas de onde são extraídas as uvas para os vinhos servidos às refeições. ?Não há outro?, orgulha-se Maria. E alguém se importa?