16/06/2001 - 7:00
Terminou na quinta-feira 21 mais um experimento em liberalismo econômico no Brasil de Fernando Henrique. Atropelado pela brutal desvalorização do real, que nos últimos seis meses encolheu 27,4 % em relação ao dólar, veio abaixo o puríssimo regime de câmbio flutuante instaurado em janeiro de 1999. O passamento se deu numa entrevista coletiva em que o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, pai da criança, anunciou que o Brasil faria captações adicionais de US$ 10,8 bilhões para fazer face à demanda explosiva de dólares das últimas semanas ? e que parte desse dinheiro, exatos US$ 2 bilhões, virá de uma linha de crédito do Fundo Monetário Internacional, o FMI. Na mesma ocasião, de olhos inchados pela conjuntivite, Fraga avisou que o BC poderia intervir mais ativamente no mercado para evitar movimentos injustificados da moeda. Estava feito. Depois de um mês em que o País assistiu boquiaberto à escalada do dólar, o governo fez o que se esperava dele: mandou a ortodoxia às favas, mostrou os dentes e sinalizou ao mercado que o descalabro que levara a moeda americana a R$ 2,48 na quarta-feira tinha chegado ao fim. No dia seguinte, o dólar fechou a R$ 2,38 ? e o País respirou aliviado. Às 12h50 da sexta-feira 22, a moeda americana já valia R$ 2,31.
?Saímos do modelo ortodoxo de câmbio flutuante?, festejou o economista Octávio de Barros, do BBV Banco. ?Temos que ser austeros mas não austríacos. O BC mostrou que existe?, aplaudiu Emilio Garofalo, ex-diretor do BC e uma das maiores autoridades em câmbio do País. ?O Banco Central vinha confiando demais no mercado?, concordou Carlos Eduardo Rocha, do banco Credit Lyonnais. Mesmo na Fiesp, que anda de cara virada para a equipe econômica, essa capitulação teórica foi bem recebida. ?A mudança de postura era necessária?, disse a entidade num comunicado. ?A maior oferta de dólares pode romper o ciclo vicioso e conferir maior racionalidade a esse mercado.? Diante desse coro de aprovação, impõe-se a pergunta: por que o governo não agiu antes? Era preciso esperar que a dívida pública, 44% da qual está dolarizada, crescesse R$ 24 bilhões? Era imprescindível que as empresas privadas de capital aberto sofressem um impacto de US$ 4,9 bilhões nos balanços do primeiro trimestre por contas das suas dívidas em dólares? Seria realmente necessário que companhias como o moinho Vilma, de Minas Gerais, vissem seus custos subir 17% na importação do trigo apenas por causa da desvalorização? Entrando mais cedo na arena o BC não teria evitado a truculência da elevação de 1,5% dos juros na quarta-feira, somando 3% de alta nos últimos três meses?
Ninguém tem boas respostas para essas questões. O economista Edmar Bacha, diretor do banco BBA, opina que o governo não poderia ter agido antes, sob o risco de levar ?uma banana do mercado e transformar a bolha irracional em bolha racional?. Em outras palavras, se Fraga errasse o tiro poderia ser engolido pela fera à solta. Mas na semana passada, diz Bacha, três fatores que estavam na origem da bolha cambial ? a crise de liquidez argentina, a perspectiva de apagão no Brasil e o colapso da liderança governista no Congresso ? tomaram contornos mais risonhos, fornecendo o cenário adequado a um golpe de punho do BC. ?O custo da bolha estava crescendo muito, por causa das contas das empresas e da pressão sobre a inflação?, diz Bacha. ?O BC fez bem em agir e escolheu uma boa hora.?
Embora seja cedo para celebrar o final da crise cambial, cujo desenrolar ficará claro nos embates de mercado dos próximos dias, já é possível extrair desse episódio uma importantíssima conclusão: a de que o dólar tornou-se importante demais para ficar sob a tutela exclusiva do mercado. E, daí, ou o BC acaba com a crista do dólar ou o dólar acaba com o Brasil. ?O dólar é o preço mais importante da economia brasileira. Ele altera todos os outros?, resume Garofalo. O dólar está em toda a cadeia produtiva, através dos insumos e matérias-primas. Está nos passivos das empresas e dos bancos, que contraíram dívidas em dólares. Está nas receitas das empresas exportadoras e nos compromissos dos governos, externos e internos. Ele, o dólar, está cada vez mais presente nas prateleiras dos supermercados e nas casas dos brasileiros, que se acostumaram a toda sorte de produtos fabricados no exterior. Se na década de 70 o falecido Mário Henrique Simonsen já dizia que a inflação aleija mas o câmbio mata, a dependência do dólar é hoje muito mais acentuada. Entre 1993 e 2000, as importações brasileiras mais que dobraram: saltaram de US$ 25 bilhões para US$ 55 bilhões anuais. No mesmo período, o pagamento de juros ao exterior, público e privado, pulou de US$ 8,2 bilhões para US$ 15 bilhões. O déficit em conta corrente, diferença entre o que o País arrecada em dólares e o que gasta anualmente, elevou-se de US$ 592 milhões em 1993 para atuais e chocantes US$ 24,6 bilhões ? um crescimento de 42 vezes! Essa conta vinha sendo fechada, nos últimos anos, com aporte de investimento direto estrangeiro, que aumentou de US$ 7,6 bilhões em 1996 para US$ 29,8 bilhões no ano passado. Ocorre que a crise de energia e o desaquecimento global farão esse montante cair este ano para uma quantia estimada em US$ 18 bilhões. É bastante, mas tornou-se pouco diante da rapidez com que a economia brasileira aberta e globalizada metaboliza dólares. ?Todos sabem que temos um modelo de economia aberta com déficit externo elevado?, diz Raul Velloso, o mais conhecido especialista brasileiro em contas públicas. ?Mas para que ele funcione o governo tem de fazer sua parte, inclusive sinalizando o rumo nos momentos de crise. O presidente e o ministro da Fazenda estavam muito calados.?
Na verdade, Malan e Fernando Henrique continuaram calados. O ministro, que está se tornando um mestre da dissimulação, deu entrevistas em Nova York, na terça-feira 19, negando a necessidade de sacar o Colt. ?Toda vez que há um efeito de manada é melhor esperar do que tentar uma intervenção?, disse ele. O presidente tampouco falou sobre o assunto ? embora ao longo da semana Fraga tivesse discutido com ambos os seus chefes os detalhes do contra-ataque que já estava em curso. Fernando Henrique foi sendo informado do plano por telefonemas do Rio de Janeiro, onde o presidente do BC se recuperava da conjuntivite. O conteúdo dessa ofensiva só viria a público na entrevista de quinta-feira, quando Fraga anunciou que o governo revira suas metas de captação e começou a explicar as razões da elevação do juro na reunião do Copom da noite anterior ? a mais longa de que se tem notícia, que só terminou por volta das 21h30 quando Fraga ligou para o presidente informando sobre as decisões do grupo. ?Estamos sinalizando uma preocupação com as metas de inflação?, disse ele aos jornalistas. ?E isso tem a ver, em parte, com a taxa de câmbio.? Parece ser meia verdade. O professor José Alexandre Scheinkman, da universidade de Princeton, lembra que mesmo o esfacelamento
do real em janeiro de 1999, quando a moeda caiu 43% frente ao dólar, não contaminou a meta de inflação. Logo, o que o presidente do BC não está admitindo é que controlar o dólar passou a representar uma meta em si mesma. Isso não é bom nem é mau,
é apenas fato. ?Armínio saiu fortalecido do episódio?, diz Garofalo. ?Ele percebeu que quando a prática desmente a teoria é hora de mudar.? Tudo bem, desde que o dólar não volte a subir pelas paredes nas próximas semanas.
Colaborou Mariana Barbosa