Um complexo mapa comportamental do brasileiro. Assim pode ser lido o tradicional Relatório de Tendências Ford em sua versão 2023. A tradicional pesquisa foi feita com 16,1 mil pessoas de 16 países*. O Brasil (com 1.006 entrevistados acima de 18 anos) puxa a média global nas respostas negativas. Os resultados são de leitura obrigatória e servem para reflexão profunda, a começar pelo alto escalão do governo Lula III, em especial na dimensão sobre Nossos Medos. Quando as perguntas entram nesse universo, a gente está acima de todos os demais. E isso é péssimo sinal para qualquer projeto de virada econômica.

O relatório trata de seis dimensões, além da relacionada a Nossos Medos. Nesta, há cinco questões-chave — Desigualdade Econômica, Doença Grave de Alguém Próximo, Terrorismo Doméstico, Abuso de Drogas e Inflação. Ficamos à frente nas quatro primeiras e em terceiro quando o assunto é a alta de preços, atrás apenas de espanhóis e sul-africanos. No mundo, a população que demonstra estar mais tranquila é a chinesa. Em quatro dos cinco temas consultados os asiáticos ficam no fim da fila, o que aqui significa o melhor lugar. Apenas em relação ao medo vinculado a abuso de drogas eles ocupam a penúltima posição, antes dos alemães.

É fato que o mundo todo não anda dormindo bem, a depender do cenário revelado pelo relatório. Seis em cada dez de nós afirmamos estar mais sobrecarregados, com a sensação de esgotamento em relação à vida. Na origem desse sentimento há fatores globais, nacionais e pessoais — começa pela instabilidade provocada pela pandemia e pela guerra no leste europeu; segue-se com a inconstância político-econômica que isso provocou nos cenários nacionais; e termina no campo pessoal, com a preocupação que temos relacionada às finanças. A notícia boa é que a maioria do planeta acredita que tudo vai melhorar. A ruim: só daqui a cinco anos.

Além da dimensão Enfrentando Nossos Medos, há outras cinco: Tomada de Posição, Tecnologia, Escapismo/Autoconhecimento, Otimismo e Caminho para a Alegria. Uma delas (Tomada de Posição) tem mais a ver com a postura que esperamos das empresas, então não há otimismo ou pessimismo atrelado. Nesse item mandamos um recado claro para as corporações. Diante da afirmação ‘espero que as marcas se posicionem sobre as questões sociais’, os brasileiros estão entre os que mais concordam (71%), junto de chineses, e atrás apenas de sul-africanos (77%).

SOLIDÃO Nas outras quatro dimensões estamos mal em mais duas (Tecnologia, em especial sobre Segurança Cibernética, e Escapismo/Autoconhecimento, quando tratamos de Solidão). Na primeira, sete em dez brasileiros dizem sentir medo de ter ‘informações pessoais caindo em mãos erradas’. Bem acima da média global de 43% entre os homens e 50% entre as mulheres. Na segunda dimensão, diante da frase ‘eu me sinto sozinho regularmente’, nossa resposta afirmativa (56%), ao lado da Índia, está acima de todos os demais países. O assunto é também um problema geracional, já que os jovens tendem a se sentir mais solitários. No Brasil, a geração Geração Z (nascidos entre 1997-2012) responde ‘sim’ em 74% das vezes, índice que entre os Baby Boomers (1946-1964) cai para 50% — forte indicador de problema à vista na gestão púbica da saúde mental.

Por outro lado, há boas notícias. A despeito de todos os nossos medos, lideramos quando as perguntas tratam de Otimismo ou Visão Positiva da Vida. Perguntados sobre cada um de nós ‘buscar intencionalmente a alegria no cotidiano’, a média de todos os 16 países fica em 77% (homens) e 81% (mulheres). No Brasil, os números crescem para 81% (homens) e 85% (mulheres). E questionados se acreditamos que ações individuais podem provocar mudanças positivas, 82% respondemos sim, atrás apenas de mexicanos (85%). Para Billy Nascimento, doutor em neurofisiologia e CEO da Forebrain, empresa que usa neurociência para entender o consumidor, há uma excelente notícia aqui. “Essa característica do brasileiro, de querer que as coisas mudem e acreditar que as coisas podem mudar, contribui de forma muito positiva”, afirmou.

O Relatório de Tendências Ford 2023, como qualquer documento estatístico, retrata momentos e não são definitivos ou fatalistas. De toda forma, traz insights poderosos. Mostra os brasileiros como uma população extremamente assustada, e que ainda por cima se sente solitária, especialmente entre os jovens. Paradoxalmente, no entanto, um povo que mantém certo otimismo e acredita ser capaz de mudar as coisas, ser senhor de seu destino. Um mapa complexo, como se vê. Com pistas suficientes para entender o momento em que estamos e, em especial, o que desejamos. O que inclui um Estado funcional.

* Países em que a pesquisa foi realizada: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, China, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Itália, México, Reino Unido e Tailândia.

“HÁ UMA FRAQUEZA GRANDE NAS INSTITUIÇÕES”
Billy Nascimento, CEO da Forebrain

Divulgação

Doutor e mestre em neurofisiologia, além de cofundador e CEO da Forebrain, primeira empresa brasileira que usa neurociência para entender o comportamento do consumidor, Billy Nascimento diz que as marcas podem e devem ocupar o espaço entre o medo e a esperança que o Relatório de Tendências Ford 2023 aponta e “assumir o papel de construir as pontes”.

Faz sentido o resultado da pesquisa?
Pelo contexto que passamos nos últimos anos, de pandemia, excesso de polarização, que a pesquisa também aborda, e obviamente com a crise econômica, que se arrasta não só de agora, mas de muito antes, faz sentido essa sensação de medo que as pessoas têm: em relação ao futuro, à família, ao país.

Retomadas econômicas pedem uma expectativa positiva, do contrário se tornam mais difíceis. Nesse sentido, os resultados da pesquisa desanimam?
A pesquisa mostra que as pessoas estão sentindo medo, mas por outro lado elas sentem também esperança.

Como as marcas devem se comportar numa situação assim?
O papel das marcas é construir essa ponte entre o medo e o receio até a esperança.

Há espaço real para isso?
Claro que precisamos sempre ver o Brasil com essa diferença de classes muito grande, um lugar de muitas facetas. Mas sim, há espaço. Essa característica do brasileiro, de querer que as coisas mudem e acreditar fortemente que as coisas podem mudar, contribui de forma bastante positiva.

Ao mesmo tempo as pessoas mostram descrédito crescente nas instituições.
Há uma fraqueza muito grande das instituições, o que impede que as pessoas acreditem nelas como possibilidade de intervenção e de retomada e a gente fique menos dependente de diferentes governos. Isso traz a sensação de que a cada eleição tudo pode mudar completamente, e de que nada aqui é constante.

E qual é o papel do Estado nesse ambiente?
Desde a Constituição de 1988, a expectativa da população é de um Estado que esteja bastante presente nas nossas vidas, em relação a segurança, educação e saúde, principalmente. Mas no fim das contas, a gente não tem o retorno que deveríamos ter em relação a essas questões.

O Estado falha?
Ele está muito ineficiente e defasado, trazendo mais percalços à população do que resolvendo os problemas. E aí vem a sensação de que ‘se ninguém pode fazer algo por mim eu mesmo tenho de fazer’. Ao pensar dessa forma, a chance de desenvolver um raciocínio individualista pode afetar demais a estrutura da nossa sociedade.

Por quê?
Porque nenhuma sociedade conseguiu se superar, crescer e se desenvolver antes de um grande acordo entre a população. Com as pessoas se unindo em torno de um objetivo de mudança e construção de algo maior e comum. Isso faz toda a diferença.