01/10/2020 - 11:58
O menino de 13 anos que vende manga em uma feirinha do Rio de Janeiro tem a mesma idade da filha de Vanessa Cavalieri e, até alguns meses atrás, estavam no mesmo ano escolar.
Mas a menina acompanhas aulas on-line em casa, enquanto a educação do menino foi interrompida pela pandemia de coronavírus, que expôs e exacerbou as profundas desigualdades do sistema educacional brasileiro.
“Desde que começou a quarentena, em 16/3, ele não tem aulas. Às vezes, recebe apostila da escola por WhatsApp. Ele trabalha na feira com o pai em três bairros diferentes”, escreveu Cavalieri, juíza de um tribunal de menores, em um post no Facebook que se tornou viral.
“Minha filha mais velha, Valentina, também tem 13 anos e também está no 7o ano. Enquanto eu compro mangas e morangos na feira para ela comer, enquanto Gustavo trabalha em três feiras diferentes em vez de estar na escola, a Valentina está tendo aulas on-line de português, inglês, ciências, matemática”, acrescentou.
“O abismo da desigualdade entre alunos de escolas públicas e privadas, que já é atroz, só irá se agravar ainda mais”, alertou a magistrada.
Com quase 145.000 mortes, o Brasil é o segundo país em número de vítimas fatais pela covid-19.
A tragédia não tem sido igualitária: atingiu principalmente os pobres e as minorias. E a educação é um dos setores onde as fraturas desta nação de 212 milhões de habitantes se tornaram mais evidentes.
Pais, professores e legisladores lutam com as incertezas que cercam as escolas em todo mundo, com um fator adicional de complexidade.
Os 48 milhões de alunos dos Ensinos Fundamental e Médio no Brasil estão, basicamente, divididos em dois sistemas: o de educação privada, para 19% das famílias que podem pagar; e o da rede pública, para os demais.
O tenso processo de reabertura iniciado em algumas escolas gerou discussões desconfortáveis.
“Não tem sido fácil para ninguém em nenhum país, mas as condições do Brasil tornam a situação muito mais difícil”, afirmou Catarina de Almeida Santos, professora de Educação da Universidade de Brasília.
“Dizer que vai implementar o calendário letivo de forma remota para essa população (os pobres) é fazer de conta, porque efetivamente eles não têm condições”, disse ela à AFP.
“Muitas escolas nossas não têm água potável, muitas escolas nossas não têm banheiro dentro da escola, grande parte não tem energia elétrica. Mais de 40% das escolas brasileiras não têm saneamento básico (…) O aumento da contaminação pela covid num retorno presencial é certo”, alertou.
– Ano perdido –
Como muitos pais, Cinthia Pergola, assistente social e mãe solo de São Paulo, tem lutado para manter os filhos estudando no apartamento que divide com outra família.
Ela conta, porém, que sua filha de 8 anos e seu filho de 9 não estão aprendendo muito na escola pública on-line.
“Acho que tinham que esperar, como se esse ano fosse um sabático, um ano de experimentações, de a gente estar se conhecendo como mãe e filho, e deixar para começar tudo de novo no ano que vem”, opinou, em entrevista à AFP.
Mesmo assim, Cinthia reconhece que sua família tem sorte, enquanto seu filho estuda com um MacBook.
“A gente ainda tem recursos, tem computador, tem celular. E as famílias que não têm? Têm muitas famílias que não têm nem Internet em casa”, ressaltou.
Juliana Stefanoni Iwamizu pode atestar isso.
Professora do Ensino Fundamental de uma escola pública de São Paulo, ela diz que apenas 10% de seus alunos frequentam as aulas on-line.
“Muitos moram em comunidades, nas favelas. Muitos não têm saneamento básico em casa, a comida era na escola também, uma das principais refeições. Então, alguém que não tem isso, não tem acesso à Internet para fazer as atividades”, enumera.
– Iguais? –
A situação também não é ideal no sistema privado, diante do caos e da confusão.
Apesar de terem mais recursos, metade das escolas privadas de pequeno e médio porte está ameaçada de falência, devido ao fechamento durante a pandemia, revela um estudo recente.
E esses estabelecimentos tiveram de improvisar o ensino a distância, em meio às mensagens contraditórias das autoridades locais, como as do governo de Jair Bolsonaro.
Timon Vargas, professor de química de 32 anos em três escolas particulares do Rio de Janeiro, descreve a desorganização do ensino remoto.
“Cada instituição usava um canal diferente, regras diferentes, estratégias diferentes de como lidar com os alunos (…). A educação parece ser, na verdade, um inimigo do governo federal”, acrescenta.
A confusão e a incerteza apenas aumentam com os projetos de reabertura.
No Rio de Janeiro, as escolas particulares estavam se preparando para abrir no dia 14 de setembro, sob rígidos protocolos, e as famílias estavam estocando máscaras e desinfetantes para as mãos e para as mochilas.
Uma batalha judicial, com informações conflitantes entre governos estaduais e municipais, sindicatos de professores e tribunais, semeou o caos.
Um magistrado bloqueou o retorno, argumentando que a reabertura exclusiva de escolas particulares violava o princípio da igualdade perante a lei.
“Contribuirá para aumentar a desigualdade”, explicou Peterson Barroso Simão, do Tribunal de Justiça.
Essa decisão foi revogada em segunda instância na quarta-feira à noite (30).