22/07/2009 - 7:00
?A escola pública já foi boa porque era para nós, a elite. Construímos um País para 10%?
43 milhões de crianças estão nos ensinos básico e fundamental
DINHEIRO ? Como avaliar o nível educacional brasileiro?
VIVIANE SENNA– A má qualidade de educação é o exterminador do futuro da criança brasileira. De cada dez que entram na primeira série do ensino fundamental, só três terminam o ensino médio. Em 11 anos, perdemos 70% das crianças. É como se um trem da Vale deixasse Carajás carregado de minério e só chegassem 30% da carga ao porto. Em educação, a carga é o principal capital do País, que são as pessoas. Perder 70% das crianças é jogar fora essa população. O Brasil perde as crianças pelo caminho.
DINHEIRO ? Esse trem está descarrilado?
VIVIANE ? Temos 43 milhões de alunos nos ensinos fundamental e médio ? é mais que uma Espanha. Se colocássemos as crianças dentro do trem, demoraria 247 anos para chegar ao destino final. E, no meio do caminho, essas crianças vão pulando: 20% descem após três anos e meio, sem concluir a quarta série. Isso significa que descerão em um país equivalente à Tanzânia, cuja população média tem, no máximo, quatro séries de escolaridade. Outros 20% descem com quatro anos e meio de escolaridade. É como no Haiti. Os próximos 20% vão desembarcar na Argélia, após cinco anos e meio. A escola é tão ruim que os alunos patinam anos na mesma série.
DINHEIRO ? Como fez o cálculo do atraso de 247 anos?
VIVIANE ? Pedi a um estatístico educacional a comparação entre as crianças brasileiras que concluíram a oitava série com equivalentes nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo de países industrializados). Pelo nível atual da educação brasileira, seriam necessários 247 anos para o Brasil diminuir a diferença entre os dois desempenhos. De cada dez alunos que concluem a oitava série, somente dois sabem o que deveriam saber nesse nível de escolaridade em língua portuguesa. É muito sério.
DINHEIRO ? O PIB brasileiro é comprometido por essa má qualidade no ensino?
VIVIANE ? A ligação é direta. A maior parte da má distribuição de renda não está ligada a desigualdade social, questões raciais ou moradia. Mais de 50% do problema está na educação. Quer melhorar o PIB do País? É só mexer na educação. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Brasil cresce 0,5% a menos todos os anos em razão do número de jovens que abandonam a escola sem concluir o estágio seguinte. É 0,5% do PIB jogado fora.
DINHEIRO ? É nosso sistema educacional que é falho?
VIVIANE ? A nossa capacidade de ensinar é falha. A educação brasileira tem uma séria deficiência na eficiência. É um sistema que leva muito tempo para entregar muito pouco. São oito anos para entregar só 20% dos resultados que o próprio sistema se propõe. É ineficiente.
DINHEIRO ? Não há outra explicação para o problema?
VIVIANE ? O primeiro passo é ter consciência de que esse é um problema de todos. Pesquisas com pais e alunos mostram que eles estão extremamente satisfeitos com a escola. Consideram bom o que recebem. Esse é um problema: falta demanda qualificada. Nenhum país vai dar certo com a educação da forma como está. É uma questão pública que depende do esforço público para ser resolvida. A responsabilidade deve ser compartilhada entre a sociedade, os empresários e o governo.
DINHEIRO ? É possível calcular o impacto na economia?
VIVIANE ? Cada criança que fica no trem, avançando na educação, tem um acréscimo de 10% na renda. A População Economicamente Ativa brasileira tem, em média, sete anos de escolaridade. A dos EUA, 13 anos. Se dobrássemos a escolaridade nacional, estaríamos dobrando a renda do País.
DINHEIRO ? É caro dar educação de qualidade?
VIVIANE ? Não custa caro. Um programa que faz o município andar, injetando combustível de qualidade, custa R$ 8 por mês por criança. O problema não é de dinheiro, mas de aplicação eficiente do dinheiro existente.
DINHEIRO ? Qual é o orçamento do governo?
VIVIANE ? Se considerarmos o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, está em torno de R$ 1,2 mil por criança. É importante ter mais recurso para educação, porém, é preciso ter mais eficiência na gestão. É como uma empresa falida. Não adianta injetar mais dinheiro na empresa. Primeiro, muda-se a cultura gerencial. O sistema público não tem responsabilidade por gerar resultados. Se a escola reprova 90% das crianças, não acontece nada com ela, com o prefeito, o diretor ou o professor.
DINHEIRO ? Por que a eficiência é tão difícil de ser alcançada?
VIVIANE ? O sistema educacional enxerga a eficiência como a intromissão do sistema capitalista. Era quase palavrão falar em eficiência na educação. Existiam pessoas que defendiam que a criança poderia ser alfabetizada até os 11 anos de idade. Esse é o padrão, de educação sem resultado, defendido pela classe alta. E é inaceitável. A criança perde quatro, cinco anos de leitura e conhecimento por não estar alfabetizada. Por que o pobre pode esperar até os 11 anos e para a elite a alfabetização é com cinco anos? Esse é o grande drama. Mesmo tendo estendido a educação para todos, com 97% das crianças na escola, ela não é eficiente. No fim, saem poucos bem preparados.
DINHEIRO ? O Estado fechou os olhos para esse problema?
VIVIANE ? A responsabilidade do Estado é igualzinha à da sociedade civil. A educação da população que não faz parte da elite não é importante para o País. É a única explicação para isso. A escola pública já foi boa porque era para nós, a elite. Poucas pessoas iam para a escola e quem ia era a elite brasileira. Quando entrou a quantidade pela porta da frente, saiu a qualidade pela porta dos fundos. Construímos um País para 10% da população. A elite política deste país é um reflexo nosso. Nunca consideramos que deveríamos construir um País para todo mundo, que precisa dar educação de qualidade para todos.
DINHEIRO ? Qual o papel do presidente Lula na educação?
VIVIANE ? O principal papel dele era colocar um ministro que acertasse a direção. E esse acertou. A tarefa do País é fazer o ensino básico andar bem. O ministro Fernando Haddad focou nisso. Normalmente, os ministros focam no nível universitário para atender a elite. O governo anterior realizou uma tarefa quantitativa, que era colocar todas as crianças na escola. O ministro Haddad trouxe a lógica da qualidade, uma mentalidade voltada para a educação de resultados. Toda criança na escola aprendendo.
DINHEIRO ? A educação se tornou um negócio?
VIVIANE ? As escolas privadas de nível superior estão surgindo dentro do vácuo da falta de presença das escolas públicas, que não atendem toda a demanda. Não vejo problema de ter escolas privadas no País, muitas são de excelente nível. O que precisa é ter escola de qualidade, pública ou privada. Compete ao Estado garantir esse critério de qualidade. Quando as pessoas entendem o que é bom, elas vão procurar o que é bom. Em Pernambuco, havia pessoas que atravessavam o rio São Francisco, andavam quilômetros na mata, para ter aula na Bahia. Isso porque os pais descobriram que as crianças aprendiam do outro lado do rio.
DINHEIRO ? Existem exemplos práticos de mudanças na educação?
VIVIANE ? Um menino em Tocantins repetiu sete vezes a primeira série. Ele tinha epilepsia, um problema sério, e os pais resolveram tirá-lo da escola e colocá-lo em uma instituição de deficientes mentais. Mas a tia, que tinha feito um curso de capacitação conosco, quis tentar mais uma vez. Ela colocou o garoto em um dos nossos programas e ele concluiu cinco anos em um. Saiu da primeira série e foi para a sexta. Em dois anos, terminou o ensino fundamental. Em um ano e meio, concluiu o ensino médio. Em quatro anos e meio, entrou na faculdade de administração rural. O problema não era ele, era a escola. O que mudou foi o sistema, que ficou mais eficiente, e não a escola ou a professora. O problema da educação é de gestão, mais do que uma questão pedagógica.
DINHEIRO ? E como explicar outras deficiências, como a nutricional?
VIVIANE ? Na teoria de 20 anos atrás, a criança brasileira era subnutrida e não aprendia. A escola não se responsabilizava, punha a culpa na criança e na família. Fazia sentido, mas não era verdade. Atendemos mais de dez milhões de crianças, sendo cinco milhões em escola pública. Todas as crianças subnutridas aprenderam quando foi bem ensinado.
DINHEIRO ? A questão financeira não é importante?
VIVIANE ? As pesquisas estatísticas mostram uma alta correlação entre performance baixa e nível socioeconômico baixo. Quanto mais pobre a família, pior o desempenho da criança. Novamente, faz sentido ter a correlação. Porém, se aceitarmos isso, também temos que aceitar que é preciso esperar as famílias brasileiras enriquecerem para a escola conseguir ensinar. Isso é outro absurdo lógico, tão absurdo quanto achar que a população brasileira é mais burra que a população mundial. Esses são álibis usados para não resolver o problema onde ele está, que é na escola. Mas o fato é que com a mesma escola, as mesmas condições, o mesmo professor e a mesma criança, se tornarmos o sistema eficiente, o resultado sai de 20% para ficar acima de 90%. Com os mesmo atores, não muda nenhum.