A guerra camuflada entre a Otan e a Rússia não é, sob todos os aspectos, uma briga entre mocinho e bandido. Há telhados de vidro em ambos os lados. A Organização do Tratado do Atlântico Norte, que tem hoje a Turquia como um dos mais importantes aliados, é também parceira de um governo autoritário, agressivo e opressor de minorias. Antes de algum diplomata turco ou funcionário de embaixada começar a escrever notas de repúdio, que releia rapidamente alguns livros de história. Não é novidade para ninguém que, desde os tempos do Império Turco-Otomano, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial, o estilo turco de ser é muito bem conhecido por sua forma nada ortodoxa de impor a força.

Assim como hoje fazem os russos em território ucraniano, os turcos cometeram atrocidades e crimes de guerra por onde passaram durante séculos. Por orientação política, ideológica, nacionalista, eugenista e racista – ao estilo Turquia acima de tudo, Deus acima de todos –, o país capitaneou o extermínio sistemático de povos que julgavam ser inferiores ou que divergiam de seu projeto de expansão territorial. O caso mais emblemático é o genocídio dos armênios perpetrado em 1915 pelo Império Turco-Otomano, antes mesmo do holocausto dos judeus pelos nazistas ou pelo holodomor, o genocídio de ucranianos pelos soviéticos há mais de um século.

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O Império Turco-Otomano controlava uma vasta região, que ia do Cáucaso, passando pelos Bálcãs, Anatólia, Península Arábica e por grande parte do Oriente Médio. A Armênia, que havia sido conquistada pelos turcos, tornou-se súdita dos sultões. Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1914, os interesses do Império Turco-Otomano iam contra os de vários povos e nações envolvidos na guerra, inclusive contra tribos árabes muçulmanas. Resultado: quase 1,8 milhão de pessoas foram exterminadas, incluindo mulheres, crianças e idosos. Os turcos reconhecem a morte de “apenas” 800 mil.

É este país liderado pelo presidente Recep Tayyip Erdogan, no comando do governo desde 2014 (sim, desde 2014), que agora tenta barrar a entrada de Suécia e Finlândia para a Otan. Pura birra política e comercial. O desapreço do líder turco às instituições democráticas, a pressão por controle da mídia, o apoio a grupos paramilitares na Síria e no Iraque, além de inúmeras violações de tratados internacionais e de direitos humanos fizeram com que a Suécia, principalmente, deixasse de vender armamento para a Turquia nos últimos anos. Agora, Erdogan vê uma chance de retaliação.

Mas o que está em jogo é muito mais do que o ego do governo turco. Não apoiar o fortalecimento da Otan no Leste Europeu e nos países nórdicos é enfraquecer a própria segurança da Turquia em um momento crucial da invasão de Vladimir Putin à Ucrânia. Negociar é uma especialidade dos turcos, seja um simples punhado de tâmaras frescas ou um elegante tapete no Grand Bazaar, fundado em 1455 quando Constantinopla virou Istambul. Qualquer tentativa de pechincha ou barganha será um problema para o Ocidente resolver. Ou Estados Unidos e Europa enquadram a Turquia, ou a Turquia desmoraliza a Otan.