Estudo inédito do Instituto Fogo Cruzado analisou projetos de lei propostos entre 2023 e 2024 por congressistas apoiados pelo grupo Proarmas, organização criada para defender o armamento civil.A agenda armamentista não caminha só no Congresso Nacional. Ela também instrumentaliza pautas de gênero e infância e adolescência para tentar impulsionar a flexibilização do acesso a armas. A conclusão é do estudo Proarmas no Congresso Nacional: uma análise da atuação parlamentar, produzido pelo Instituto Fogo Cruzado.

O relatório analisou 739 projetos de lei apresentados entre 2023 e 2024 por parlamentares eleitos com apoio do Proarmas, uma associação que defende a expansão do armamento civil, criada em 2020 e inspirada no modelo da National Rifle Association (NRA) dos Estados Unidos – a maior lobista do setor de armas do mundo.

Fundada por Marcos Pollon, advogado e professor de direito, a organização se define como “uma iniciativa de produzir conteúdo sobre as questões políticas, filosóficas, jurídicas e técnicas sobre armas de fogo e o acesso civil às armas de fogo”. Nas eleições de 2022, o Proarmas financiou diversas campanhas e ajudou a eleger 22 congressistas: 15 deputados federais e sete senadores, somando 18,6 milhões de votos.

De acordo com o levantamento do Fogo Cruzado, no Congresso Nacional, a bancada eleita com apoio do Proarmas – em sua maioria composta por parlamentares em primeiro mandato – tem atuado como agente de reforço das agendas já tradicionais da “bancada da bala”, termo usado para referir à frente parlamentar de políticos que defendem o armamento civil. Sua atuação, porém, vai além com esses parlamentares se alinhando a discursos moralistas sobre gênero e infância e adolescência para ganhar tração entre a base conservadora.

“Tínhamos feito um estudo anterior, mostrando que os parlamentares pró-armamentos estavam se renovando no Congresso. Há muita gente nova falando sobre armas. E quisemos entender o que essas pessoas estão trazendo para o debate”, afirma Terine Coelho, gerente de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado e uma das responsáveis pela pesquisa.

Para identificar padrões na atuação legislativa dos parlamentares, foi criado um banco de dados com todas as propostas legislativas de cada autor, a partir de dados da Câmara e do Senado. Por meio deles, o Fogo Cruzado identificou as principais temáticas abordadas, os padrões de produção legislativa e as prioridades destes parlamentares.

O que defendem os novos parlamentares pró-armas

Ao analisar projetos de lei de autoria de 23 congressistas ligados no período estudado ao Proarmas – sendo 569 PLs da Câmara dos Deputados e 170 do Senado Federal –, o Fogo Cruzado revelou que eles abordam 27 temas distintos, mas apenas 7% dos projetos tratam diretamente sobre armas e munições.

A maioria das propostas está concentrada em temas como segurança pública (78 PLs) e código penal (73 PLs), somente então aparece a questão de armas e munições (52 PLs). Elas são seguidas por projetos que tratam da infância e adolescência (46 PLs) e direitos fundamentais e cidadania (45 PLs).

“O discurso deles está muito mais vinculado a um fortalecimento das polícias e a uma discussão corporativa. E estão falando de código penal, de endurecimento de pena, que é uma discussão antiga da bancada da bala que eles entram para fortalecer”, afirma Coelho.

Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, não é surpreendente que os novos parlamentares eleitos sob a bandeira do armamento civil se curvem às pautas tradicionais da bancada da bala ao entrar no Congresso. “Isso corrobora a tese de que todo parlamentar que se propõe a falar de segurança pública no parlamento segue o mesmo padrão, que é priorizar o endurecimento penal”, diz.

Pauta da “bancada da bala”

Em 2020, um levantamento do Sou da Paz sobre a atividade legislativa no Congresso mostrou que, na época, o endurecimento penal também era o tema mais frequente nas propostas apresentadas. “É muito difícil você entrar na Câmara e só ter a agenda das armas, porque ela é praticamente uma agenda vazia. Não tem compromisso com segurança pública, com melhorar a política”, afirma Ricardo.

De acordo com Coelho, um estudo anterior do Fogo Cruzado mostra que a partir de 2015 houve um aumento do debate sobre armamento no Congresso e que a bancada vem se renovando, enquanto o grupo de parlamentares que atua pró-controle de armas não se renova.

Essa nova bancada, mostra o estudo mais recente do Fogo Cruzado, traz ainda uma tendência de propor projetos de lei que buscam instrumentalizar problemas sociais complexos, como violência doméstica contra mulheres e a insegurança no ambiente escolar, para justificar a flexibilização do acesso ao armamento.

Há projetos, por exemplo, que buscam conceder prioridade e isenção fiscal para mulheres vítimas de violência na aquisição de armas, propostas que autorizam o porte de armas para professores e funcionários escolares, além da obrigatoriedade de segurança armada em instituições de ensino.

Uso das questões de gênero e infância para falar de armas

De acordo com o levantamento, em dois anos, esse grupo apresentou 46 projetos de lei que tratam da temática da infância e adolescência. Sob o pretexto de proteger as crianças e adolescentes, os parlamentares têm proposto ideias que findam em restringir direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990. São PLs que trazem termos como “degradação moral”, “preservação da inocência”, “doutrinação”, “ideologia de gênero” e “ameaça à família tradicional” junto a pautas como a violência dentro das escolas.

“Nós temos de fato observado esse movimento, de parlamentares de um grupo mais conservador, que põe em xeque a própria democracia, tendo algum tipo de atuação envolvendo direitos da criança e do adolescente, mas nem sempre na leitura proposta pela Constituição Federal”, afirma Renato Godoy, gerente de relações governamentais do Instituto Alana.

Segundo Godoy, são discursos voltados a causar um pânico moral, não são baseados em evidências e que se aproveitam da sensibilidade da sociedade para a área da infância. “O tema da criança mobiliza, o que faz com que ele possa ser utilizado muitas vezes para fins outros que não exatamente defender o direito da criança ou adolescente”, diz.

Mesmo quando se referem ao ECA, os debates trazidos pelos armamentistas o reduzem a uma legislação sobre adolescentes que cometem atos infracionais, e não a uma carta de direitos que também abarca moradia, educação, saúde e outros. “São subterfúgios, como um trampolim, para o proselitismo ideológico, trazendo questões como endurecimento penal”, afirma Godoy.

Produção grande, mas retorno baixo

O estudo do Fogo Cruzado mostra ainda que a média de projetos apresentados pelos parlamentares apoiados pelo Proarmas é 68% maior do que a registrada em todo o Congresso. Nos dois primeiros anos da atual legislatura, esses congressistas apresentaram em média 32 PLs por autor. A média geral é de 19 projetos por parlamentar.

Apesar do grande volume, até o momento, apenas quatro propostas foram aprovadas: uma lei que tratou sobre as chuvas no Rio Grande do Sul; outra que reconheceu o Festival Folclórico de Parintins e os bois Garantido e Caprichoso como manifestação da cultura nacional; a lei que instituiu 2023 como “Ano Nacional Fernando Sabino”; e um projeto que concedeu o título de Capital Nacional da Farinha de Mandioca ao município de Cruzeiro do Sul, no Acre.

Dos outros projetos, 22 foram arquivados, 15 foram retirados pelo autor, 70 estão prontos para ir ao plenário e 21 PLs já tiveram progressão de casa. Para Coelho, a relação entre projetos propostos e aprovados mostra que muitos dos PLs têm uma função mais discursiva do que efetivamente legislativa, ou seja, são feitos para mobilizar as bases.

Carolina Ricardo, do Sou da Paz, lembra também que muitos desses políticos objetivam gerar conteúdos e cortes, para mobilizar a pauta nas redes sociais, mais do que influenciar o debate no Congresso. “É um perfil parlamentar que não tem compromisso com resultado, tem compromisso com as suas redes sociais. Não sabe e não quer fazer política de construção, porque dá trabalho”, acrescenta.

O grupo financiado pelo Proarmas é composto majoritariamente por homens, com somente três mulheres. Outra característica é a presença de profissionais ligados à segurança pública e às forças armadas – 8, dentre os 23 eleitos. Dezenove congressistas são filiados ao Partido Liberal (PL). Os demais parlamentares estão distribuídos entre Republicanos (2) e União Brasil (2).

A DW procurou o grupo, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.