O mundo dos negócios está perplexo. Ainda está fresca na memória a lembrança de uma Parmalat poderosa, sinônimo de leite longa vida, dona de uma marca reconhecida em cada esquina do Brasil, vitoriosa nos patrocínios esportivos e por vezes imbatível na publicidade ? quem não se recorda dos mamíferos e do bordão ?tomou??. Aquela Parmalat não existe mais. ?A sobrevivência da empresa é questão de dias. Estamos falando de dias, não de semanas?, afirmou um irritado Ricardo Gonçalves, presidente da Parmalat do Brasil, na quinta-feira 5, após sair de uma audiência na Câmara dos Deputados em Brasília. A empresa está em concordata e enfrenta cinco pedidos de falência na Justiça. Não consegue honrar compromissos financeiros com fornecedores, bancos e produtores de leite. Acumula dívidas estimadas em US$ 1,8 bilhão. Na semana passada, sem matéria-prima e crédito, as oito unidades da Parmalat no Brasil começaram a paralisar suas atividades. A ociosidade chegava a 80%. Seus dirigentes e suas contas estão sendo investigados pela Polícia Federal, ávida por descobrir conexões entre a fraude contábil na Itália (de mais de 10 bilhões de euros) e as operações da filial. Até o superministro José Dirceu entrou na arena prometendo cadeia para os responsáveis. A Parmalat agoniza. Sem o respaldo financeiro da matriz e com as portas fechadas nos bancos, a única saída é fazer tentar passar uma medida provisória, em discussão no Planalto, que altera a Lei de Falências, dando aos credores garantias firmes no caso de novos empréstimos à Parmalat. Mas em Brasília, poucos acreditam no sucesso da MP. Na última semana de janeiro o próprio Gonçalves já havia prenunciado o caos: ?Sem crédito a empresa não entra em fevereiro?. E fevereiro chegou.

?Há um forte estrangulamento da Parmalat?, disse à DINHEIRO na quinta-feira 5 o ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. Está em pleno andamento uma grande operação para sangrar e esquartejar o que resta da Parmalat no Brasil. Os bancos estão jogando duro com a empresa. A direção da Parmalat já conversou pelo menos sete vezes com o comitê dos bancos credores para tentar uma solução. Em vão. Formou-se o consenso entre os banqueiros de que não será emprestado um centavo sequer à Parmalat. Os fornecedores também estão irredutíveis. A Tetrapak, parceira de longa data da Parmalat, só fornece embalagem mediante pagamento à vista. A mesma medida foi tomada pela Italplast, também fornecedora de embalagem. E o Moinho Pacífico, do empresário Lawrence Pih, cancelou a entrega de farinha de trigo, além de pedir falência da Parmalat. ?Eles me devem e não querem pagar. Então fui aos tribunais?, declara Pih. O governo, que acompanha de perto a ação do mercado, afia o cutelo para começar a fatiar a empresa tão logo a Justiça aceite o pedido de concordata. Na próxima segunda-feira 16 de fevereiro, será o Dia D da Parmalat. É quando terá que acertar as contas de janeiro com os fornecedores de leite. As autoridades do governo preparam-se para um possível estrangulamento da empresa perto do carnaval.

Na semana passada, o ministro Rodrigues armava um plano de emergência para fatiar o que restou da Parmalat e transferir a gestão das indústrias para cooperativas brasileiras. O próprio Gonçalves admitiu na quinta-feira a venda da empresa como ?alternativa para garantir a sobrevivência da marca?. Na gaveta do governo, já existe até um mapa pronto dos grupos que poderiam assumir as operações da Parmalat. Com a concordata, fica inviável juridicamente vender qualquer bem da Parmalat. Mas parcerias ou arrendamentos não estão descartados. É isto que o governo pretende fazer. A unidade de Carazinho (RS), por exemplo, deve ir para a cooperativa CCGL. A de Araçatuba (SP) ficaria com a cooperativa Paulista ou a Nestlé. Não
há previsão ainda sobre o que fazer com a unidade de Jundiaí, paralisada desde a semana passada. Em Santa Helena (GO), a
Nestlé dividiria a fábrica com a Itambé e a dupla repetiria a dose
em Garanhuns. Em Itaperuna (RJ), uma das regiões mais afetadas
pela derrocada da Parmalat, a Cooperativa Capil cuidaria da usina.
E na região de Ponta Grossa, as cooperativas Batavo, Castrolân-
dia e Arapoti assumiriam a Batávia.

Risco para o setor. Rodrigues passou os últimos dias marcando encontros com empresários do setor lácteo. Conversou com presidentes de cooperativas e com os presidentes da Nestlé, Ivan Zurita, e da Itambé, José Pereira Campos Filho. O plano é incentivar a organização de grupos de cooperativas para que possam arrendar as fábricas. Evidentemente, esse plano precisa do consentimento da outra parte, a Parmalat. A multinacional Nestlé seria usada como âncora para assumir as unidades nos locais onde as cooperativas
não consigam fechar o negócio. ?Faremos o que for bom para o governo?, disse Zurita a Rodrigues.

Novamente, o mundo dos negócios ficou perplexo. Por que a Parmalat incomoda tanta gente, a ponto de o governo tratar a questão como problema de Estado? O que Rodrigues tenta evitar é, em primeiro lugar, um caos social. A Parmalat é responsável por 8% da captação de leite no Brasil e garante o sustento de milhares de produtores. Há o risco de espertalhões do mercado aproveitarem a situação para pagar preços menores aos produtores órfãos da empresa. Isso já está acontecendo em várias regiões, onde os laticínios estão pagando R$ 0,30 pelo litro de leite ? a média do mercado é R$ 0,45. Se o preço cair ainda mais, os produtores não vão agüentar e, segundo o ministro, poderá haver risco de desabastecimento (leia entrevista abaixo). Além disso, a cadeia produtiva do leite movimenta R$ 19 bilhões. O leite in natura é o
sexto produto rural mais importante do País e o ministro não pre-
tende ver uma crise instalada no setor. ?O pior de tudo é que os laticínios ou multinacionais pagam pouco pelo produto e não repassam a economia ao consumidor. Teve uma múlti que comprou leite abaixo do preço e aumentou em 18% seu produto na gôndola?, diz o executivo de uma rede de supermercados. Segundo ele, a situação da Parmalat é crítica. ?Eles não têm produto para entregar?. Para os supermercados, a Parmalat serve como ponto de equilíbrio nas negociações com seus concorrentes. É o trunfo para que grupos mais fortes do setor de alimentos não monopolizem as gôndolas e ditem preços. ?A quebra da empresa é um mau negócio para nós?, diz o executivo. Nos últimos meses, a Parmalat viu sua participação de mercado despencar. Entre dezembro e janeiro perdeu oito pontos percentuais em leite condensado e leite em pó. O leite longa vida registrou participação de 15% em dezembro ? a Parmalat já che-
gou a abocanhar 28% desse segmento. E em janeiro, as vendas
totais da empresa bateram nos R$ 30 milhões, queda de 70% em relação ao seu faturamento médio mensal.

 

Fraude contábil. Na mesma terça-feira 3, enquanto o governo discutia as medidas para evitar um caos no setor, a fábrica da Parmalat em Itaperuna, no Rio, parava por falta de combustível nas caldeiras. A fábrica movimenta a economia de 85 mil famílias do noroeste fluminense, o que fez com que o governo local se apressasse em tomar medidas de emergência para evitar o caos social da região. Dias antes da caldeira parar, a governadora Rosinha Matheus havia patrocinado uma ação judicial para intervir na indústria. A nova direção terá um colegiado, com cinco membros, indicados pelo governo, produtores e empregados. É provável que o grupo assuma a fábrica a partir desta segunda-feira 9. No Paraná, o secretário de Agricultura, Orlando Pessuti, esteve reunido na semana passada com as cooperativas sócias da Parmalat na Batávia. São elas, a Batavo, Castrolândia e Arapoti. As três detêm 46% da empresa. A Parmalat, 51%. As conversas de Pessuti com os cooperados podem resultar na compra de ações da empresa italiana, de forma que as cooperativas se tornem majoritárias. ?Nos colocamos à disposição para o que for preciso?, disse Pessuti à DINHEIRO. Em outras palavras, o governo poderá abrir os cofres para viabilizar a operação. As medidas adotadas no Rio e no Paraná seguem em linha com o que pensa o governo federal. São os primeiros movimentos da socialização de fábricas que Rodrigues quer fazer. Na região de Socorro (SP) os produtores estão negociando com outros laticínios como Shefa e Danone. O posto de captação da Parmalat está parado. Os funcionários do posto, encarregados de processar o leite, abandonaram o laboratório e estão fazendo faxina durante o expediente. Detalhe: até a quarta-feira 4 o salário não havia sido depositado. ?A gente vai levando?, diz um funcionário. Assim como boa parte dos sete mil empregados da Parmalat no País, ele já perdeu a esperança. ?Dá para acreditar em defunto? Eu não acredito?.

O problema da Parmalat, sustentam analistas, está diretamente ligado à fraude na Itália, que minou as finanças do grupo e secou a fonte de recursos da empresa no Brasil. A filial sempre foi muito dependente do dinheiro da matriz. ?Mas a fraude na Itália pode ter sido apenas mais um grande erro de um negócio que cometeu sérios equívocos de gestão no Brasil?, diz Raul Correa, sócio da RCS Consultores e presidente para a América Latina da consultoria Moores Rowland. ?A Parmalat daqui era um gigante doido, que saiu às compras de forma avassaladora, sem se preocupar com fluxo de caixa e retorno aos acionistas?, afirma o consultor. Na década de 90, a Parmalat chegou a ter 30 companhias sob seu domínio. Entrou na área de biscoitos, de sucos, de atomatados, de chá, queijos. Pagava o que fosse para comprar mercado. ?Entre 89 e 99, ela pagou o equivalente a R$ 100 milhões em ágio na aquisição de empresas?, diz Corrêa. Era a época da farra, com a economia mundial em festa. Só que veio a recessão global entre 2000 e 2003, a matriz começou a fechar a torneira ? por circunstâncias do mercado e por presepadas dos acionistas ? e o caos se instalou no Brasil. Suspeita-se que nessa época a filial tenha começado a mandar dinheiro para a matriz. É isso que o governo está investigando: remessas ilegais para o exterior. A chave é a empresa Wishaw, com sede no Uruguai.

Outro foco de investigação do governo é a companhia Carital, que funciona ao lado da sede da Parmalat em São Paulo. É a empresa responsável pelos negócios de futebol da multinacional italiana. Houve época em que a Parmalat, que tem um histórico de 13 anos de prejuízo no Brasil, ganhou dinheiro e projeção administrando o time do Palmeiras e negociando craques para o exterior. ?O negócio futebol tem que ser visto com lupa?, declarou uma autoridade envolvida no caso. Na semana passada, o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, desembarcou na Itália em missão especial do governo brasileiro. Foi ao ministro Antonio Marzano, das Ativida-
des Produtivas, e conseguiu arrancar o compromisso de que, se o governo italiano avalizar um plano de reestruturação da matriz, as autoridades brasileiras serão chamadas para conversar. ?Que a crise sirva de lição?, desabafou Rossetto à DINHEIRO, por telefone. ?É hora de colocar na pauta nacional um sistema de acompanhamento contábil permanente.?

Colaboraram: Christian C. Cruz, Alexandre Teixeira e Patrícia Cançado

“UMA DAS SOLUÇÕES É O
FATIAMENTO DA PARMALAT?

Ministro da Agricultura quer entregar empresa às cooperativas

DINHEIRO ? Por que a Parmalat incomoda tanta gente?

ROBERTO RODRIGUES ? Porque está colocando em risco todo o setor. Há 15 dias começaram a aparecer espertalhões pagando menos aos produtores da Parmalat. O maior risco é dos pequenos produtores abaterem suas vacas para comer a carne. Se não agirmos, daqui a quatro meses, na entressafra, vamos ter uma crise de abastecimento.

Quanto tempo a Parlamat agüenta?
Está havendo o estrangulamento da Parmalat. A empresa
só tem condições de sobreviver com dinheiro novo, mas os
bancos avisaram que não emprestam um tostão a mais.

Há alguma saída para a empresa?
Se alguém der crédito, a empresa volta à normalidade. Mas
o dinheiro não virá do governo. Há a hipótese de fatiamento
da Parmalat. Caso não consigam tocar a empresa, serão
obrigados a se desfazer de suas indústrias.

O que o governo propõe?
Já estamos propondo às cooperativas que se organizem,
façam fusões e assumam as fábricas da Parmalat. O BNDES
vai financiar a compra de equipamentos ou fornecer capital
de giro para as cooperativas.