24/09/2003 - 7:00
Poucas vezes, na história da imprensa brasileira, uma reportagem provocou tanta celeuma quanto ?1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo?, assinada por Joel Silveira. Retrato ácido dos ricaços paulistanos enquanto a guerra consumia a Europa e a indústria crescia no Brasil, ele cutucava os Matarazzo, os Crespi, os Prado. Hoje transformados em nomes de rua, naquele tempo eram sobrenomes que ostentavam dinheiro e arrogância. O patrimônio das 100 empresas da família Matarazzo só perdia para o PIB do Estado de São Paulo. ?O primeiro grupo é formado pelos grã-finos de pedigree, os tais paulistas de quatrocentos anos, e representa o pináculo do grã-finismo?, escreveu Silveira. ?São criaturas repletas de antepassados… morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram aos seus descendentes um presente régio: deixaram um cartão de visita, espécie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves Lima podem entrar em tudo sem pagar nada.? O jornalista estava em São Paulo quando as bancas receberam a edição de número 178 da revista Diretrizes, dirigida por Samuel Wainer, com a chamada na capa. Resultado: um grupo raivoso, com mais de 100 pessoas, postou-se diante do Hotel Jaraguá, em que Silveira estava hospedado. Queriam trucidá-lo. ?Fui salvo por alunos do quarto ano da Faculdade de Direito, liderados pelo Jânio Quadros?, disse Silveira, de 85 anos, à DINHEIRO. Sabe-se que Getúlio Vargas, desafeto da turma do café, riu muito com o texto. Sentiu-se vingado.
Em 1945 Silveira voltaria ao ataque com uma outra crônica, ?A milésima segunda noite da avenida Paulista?, já a serviço do Diário da Noite de Assis Chateaubriand, e suas diatribes contra os Matarazzo. O motivo? Eles ameaçavam comprar a Folha da Manhã, o jornal arquiinimigo de Chatô. A noite em questão eram as bodas de Filomena Matarazzo, a Filly, filha do conde italiano, com o milionário carioca João Lage. Era ?o casamento do século? no vetusto casarão da avenida. ?Um balanço honesto, pacientemente colecionado durante a semana dourada, nos diz, então, que antes, e à margem do casamento, mas a ele ligado, houve o seguinte: 26 jantares em residências particulares; oito recepções; 16 ceias no Jequiti e sete no Roof, não falando de uma série de pequenos incidentes mundanos?, relatou a víbora, como Chatô se referia, amigavelmente, a Silveira.
As duas reportagens estão sendo relançadas pela editora Companhia das Letras num volume da série de livros dedicados ao que se rotulou de jornalismo literário. Lê-las, agora, ajuda a entender aonde foi parar o dinheiro daquela elite. De cara: a centena de empresas Matarazzo foi reduzida a uma. Os 30 mil empregados de meados do século XX são pouco mais de 700 numa fábrica de cosméticos e sabonetes. A muito custo, os herdeiros do rombo lidam com as causas trabalhistas que já chegaram a 4.800 no auge da bancarrota. Na esquina da avenida Paulista com a rua Pamplona, o terreno de 10 mil metros quadrados que abrigava o lendário casarão da família virou estacionamento (R$ 7 a primeira hora). Luiz Marcelino, de 54 anos, salário mensal de R$ 550, é um retrato do que ocorreu em seis décadas de história. Agente de segurança, 9 horas de trabalho diários, Marcelino foi apontador do departamento pessoal da Filex, companhia de plásticos que pertencia aos Matarazzo e fechou as portas. ?Saí um pouquinho antes da concordata?, resigna-se. O Cotonifício Crespi, fundado em 1898, chegou a ser o maior da América Latina, até falir em 1963, atropelado por novas empresas, pela moderna tecnologia e pelas importações de países asiáticos. Os Prado, que tinham imenso poder, sumiram da cena política no século 21 ? um deles, prefeito de São Paulo, Eduardo, casara-se em 1914 com Renata Crespi, filha do imigrante italiano Rodolfo Crespi, dono da tecelagem. Feito corajoso numa época em que os manda-chuvas do café só trocavam alianças com as moças de tradicionais famílias luso-brasileiras aparentadas entre si, as chamadas ?quatrocentonas?. Os Jafet, de origem libanesa, tiveram entre 1940 e 1942 um lucro de 181% em cima do capital da fiação, tecelagem e estamparia que controlavam. Fundada em 1906, parou de funcionar nos anos 50, depois de vastos desentendimentos entre os sucessores. Joel Silveira, do outro lado da Via Dutra, dá o veredicto: ?Aquela sociedade fechada que descrevi sumiu do mapa?, afirma. ?O dinheiro mudou de mãos, já não existem barões como antes, e os que iam para a Europa agora embarcam rumo a Miami e aos centros financeiros.?
Favorecidos pelos combates na Europa, os barões do café fizeram fortuna pendurados na indústria de alimentos, têxtil e química. Enriqueceram ainda mais com papel e cimento. Mas, depois da Segunda Guerra, no governo de Juscelino Kubitschek, não souberam identificar para onde soprava a biruta do novo País. O dinheiro rumava para os bens de capital e bens semiduráveis. Os grã-finos perderam tempo e espaço. No início da década de 50, JK chegou a oferecer aos Matarazzo sociedade com o governo na instalação da primeira montadora do Brasil, a Volkswagen. Disseram não e ficaram para trás, na memória dos tempos de fausto. Também não conseguiram se adaptar às novas técnicas de gestão empresarial. Maria Pia, a herdeira do conde, encarregada de tocar o espólio, chegou a ter um par de brincos penhorado ? algo inimaginável quando Joel Silveira pôs sua pena a serviço da malícia.
As duas reportagens estão sendo relançadas pela editora Companhia das Letras num volume da série de livros dedicados ao que se rotulou de jornalismo literário. Lê-las, agora, ajuda a entender aonde foi parar o dinheiro daquela elite. De cara: a centena de empresas Matarazzo foi reduzida a uma. Os 30 mil empregados de meados do século XX são pouco mais de 700 numa fábrica de cosméticos e sabonetes. A muito custo, os herdeiros do rombo lidam com as causas trabalhistas que já chegaram a 4.800 no auge da bancarrota. Na esquina da avenida Paulista com a rua Pamplona, o terreno de 10 mil metros quadrados que abrigava o lendário casarão da família virou estacionamento (R$ 7 a primeira hora). Luiz Marcelino, de 54 anos, salário mensal de R$ 550, é um retrato do que ocorreu em seis décadas de história. Agente de segurança, 9 horas de trabalho diários, Marcelino foi apontador do departamento pessoal da Filex, companhia de plásticos que pertencia aos Matarazzo e fechou as portas. ?Saí um pouquinho antes da concordata?, resigna-se. O Cotonifício Crespi, fundado em 1898, chegou a ser o maior da América Latina, até falir em 1963, atropelado por novas empresas, pela moderna tecnologia e pelas importações de países asiáticos. Os Prado, que tinham imenso poder, sumiram da cena política no século 21 ? um deles, prefeito de São Paulo, Eduardo, casara-se em 1914 com Renata Crespi, filha do imigrante italiano Rodolfo Crespi, dono da tecelagem. Feito corajoso numa época em que os manda-chuvas do café só trocavam alianças com as moças de tradicionais famílias luso-brasileiras aparentadas entre si, as chamadas ?quatrocentonas?. Os Jafet, de origem libanesa, tiveram entre 1940 e 1942 um lucro de 181% em cima do capital da fiação, tecelagem e estamparia que controlavam. Fundada em 1906, parou de funcionar nos anos 50, depois de vastos desentendimentos entre os sucessores. Joel Silveira, do outro lado da Via Dutra, dá o veredicto: ?Aquela sociedade fechada que descrevi sumiu do mapa?, afirma. ?O dinheiro mudou de mãos, já não existem barões como antes, e os que iam para a Europa agora embarcam rumo a Miami e aos centros financeiros.?
Favorecidos pelos combates na Europa, os barões do café fizeram fortuna pendurados na indústria de alimentos, têxtil e química. Enriqueceram ainda mais com papel e cimento. Mas, depois da Segunda Guerra, no governo de Juscelino Kubitschek, não souberam identificar para onde soprava a biruta do novo País. O dinheiro rumava para os bens de capital e bens semiduráveis. Os grã-finos perderam tempo e espaço. No início da década de 50, JK chegou a oferecer aos Matarazzo sociedade com o governo na instalação da primeira montadora do Brasil, a Volkswagen. Disseram não e ficaram para trás, na memória dos tempos de fausto. Também não conseguiram se adaptar às novas técnicas de gestão empresarial. Maria Pia, a herdeira do conde, encarregada de tocar o espólio, chegou a ter um par de brincos penhorado ? algo inimaginável quando Joel Silveira pôs sua pena a serviço da malícia.
Nos anos 40, descreve Silveira, toda grande festa tinha que começar com um par de convites. Um ia para Cornélio Procópio, o Jerry, colunista social da edição matinal da Folha da Manhã. O outro seguia para Irene de Bojano, a Bilm, rainha das notas curtas, responsável pela edição vespertina. Sem eles, não havia rega-bofe. Começava com a dupla de bisbilhoteiros e passava necessariamente por locomotivas como Irene Crespi e Yolanda Penteado, riquíssimas, mecenas de artes, a quem Silveira catalogou num grupo chamado de ?reserva?. Assim: ?têm olhos derramados sobre gente de pedigree?. Hoje, damas dessa estirpe são raras, e o tratamento oferecido aos colunistas é o oposto daquele tempo. Já não há tanto interesse em aparecer nas manchetes ? pelo menos entre os que realmente importam. Existe um paradoxo na era das celebridades: as figurinhas ditas fáceis abusam dos flashes. A verdadeira elite, contudo, foge deles. O casamento de Marta Suplicy (née Smith de Vasconcellos) com o franco-argentino Luis Favre (née Felipe Belisario Wermus), marcado para sábado, 20 de setembro, serve de paradigma dos novos tempos. Os jornalistas da coluna de Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo e César Giobbi, em O Estado de S.Paulo, não receberam convites para o evento num sítio no interior. Tentavam infiltrar informantes à revelia dos noivos, a prefeita de São Paulo e o ex-militante trotskista. Reuniria Lula, o presidente da República, ex-torneiro mecânico da Villares, cardápio com arroz-e-feijão e leitão e a fina nata do novo poder petista. A música: quarteto instrumental, uma soprano e um DJ para dançar. A aparente simplicidade da festa traz uma mensagem: é o fim do glamour dos anos 40. A riqueza exibicionista virou atitude de mau gosto. Detalhe: a prefeita casa com Favre depois de 35 anos de união com um bisneto do Conde Matarazzo, o senador Eduardo Matarazzo Suplicy.
É uma curiosa volta completa na história
da elite que construiu uma cidade. Uma
turma que o etnólogo Claude Lévi-Strauss,
com seu olhar estrangeiro, definira nos anos
50, em Tristes Trópicos, como uma ?fauna displicente e mais exótica do que ela mesmo se imaginava?. Em entrevista ao jornal Diário de S.Paulo, Marta assegurou: ?Quero uma coisa simples e ao mesmo tempo muito bonita, estou tentando arrumar essa equação e acho que estou conseguindo?. Seria um prato cheio para Joel Silveira, a víbora.