No ano passado, o governo registrou o primeiro déficit primário desde o início da série, em 1997. Em vez do superávit esperado, as contas fecharam com saldo negativo de 0,64% do PIB. A mudança da meta foi autorizada pelo Congresso em votação emergencial, em dezembro, às vésperas do recesso. Ainda assim, o governo pode ter incorrido em crime de responsabilidade fiscal por ter tentado maquiar as contas públicas, atrasando, ao longo do ano, repasses de programas sociais ao Banco do Brasil, à Caixa Econômica Federal e ao BNDES.

O objetivo era melhorar as contas públicas, adiando os pagamentos para o mês seguinte, prática conhecida no mercado como “pedalada fiscal”. Como todo mundo que anda de bicicleta sabe, quando se para de pedalar, ela não fica em pé. Foi o que aconteceu com as contas do governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), elaborado pelo ministro José Múcio Monteiro e aprovado por unanimidade pelos outros integrantes, na quarta-feira 15, mostra que o governo pode ter atrasado a transferência de pelo menos R$ 40 bilhões às três instituições.

Em consequência, elas tiveram de usar recursos próprios para pagar programas como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida e seguro-desemprego. Segundo o TCU, isso configura operações de crédito ao governo federal, o que é proibido. O órgão de controle do Executivo convocou 17 integrantes do governo passado, vários deles com cargos no atual mandato, a prestar esclarecimentos dentro de 30 dias. Entre eles estão o ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega; o ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin; o ex-secretário de Política Econômica e hoje ministro do Planejamento, Nelson Barbosa; o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini; o presidente do BNDES, Luciano Coutinho; o ex-presidente da Caixa, Jorge Hereda; e o ex-presidente do Banco do Brasil e atual presidente da Petrobras, Aldemir Bendine.

Antes mesmo de tomar uma decisão final sobre se houve ou não crime de responsabilidade e quem o praticou, o TCU enviou os autos do processo ao Ministério Público Federal, que poderá aprofundar as investigações. Nos depoimentos, o TCU vai tentar identificar quem deu a ordem para as “pedaladas”. Embora categórico em afirmar que o procedimento foi ilegal, o ministro José Múcio não quis comentar a possibilidade de a presidente Dilma Rousseff ser chamada diretamente para dar explicações. A possibilidade “não é avaliada” pelos integrantes do Tri­bunal, segundo ele.

O ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Luis Inácio Adams, responsável pela defesa do governo, diz que as transferências do Tesouro para os bancos públicos seguem um fluxo e que há pagamentos a descoberto do seguro-desemprego para a Caixa, desde 2001. “Entendemos que não houve infração, mas se for errado podemos rever no futuro”, afirmou. Ele admite, no entanto, que situações de “estresse”, como as do ano passado “afetam também a sistemática de pagamentos e cumprimento das obrigações do Tesouro”. As pedaladas de 2014 também podem ter impacto nas contas deste ano. 

O economista Bernardo Fajardo, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, estima um aumento de 0,7 ponto percentual na relação dívida/PIB, caso seja necessário fazer o ajuste contábil neste ano. “O tiro saiu pela culatra. De um lado, o governo ganhou fôlego, mas, de outro, sufocou os bancos públicos e reduziu os dividendos pagos à União”, afirma Fajardo. Para Raul Velloso, especialista em contas públicas, o parecer deixará uma lição para os administradores públicos. “Sem dúvida, isso vai ficar marcado como algo que não deve se repetir”, diz. A avaliação preliminar do TCU de que as pedaladas fiscais praticadas no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff feriram a Lei de Responsabilidade Fiscal surge como um estímulo adicional para as intenções da oposição em protocolar um pedido de impeachment.

“Se considerarmos que houve crime de responsabilidade, vamos agir como determina a Constituição”, afirmou o senador Aécio Neves (PSDB-MG). “A decisão do TCU dá força política, porque há um órgão administrativo do próprio governo federal reprovando”, afirma Humberto Fabretti, professor da faculdade de direito do Mackenzie. Ele lembra, porém, que há um debate entre os especialistas sobre a impossibilidade de um processo de impeachment ser aberto por atos cometidos na gestão anterior. Para o ministro da AGU, a possibilidade é “um absurdo”. “Não tem nenhuma responsabilidade pessoal da presidente”, afirma Adams. As investigações é que vão dizer quem deu a ordem para pedalar.