Um dos mais memoráveis capítulos da história de Pelé é, sem dúvida, seu apelo ao mundo ao marcar o milésimo gol, em 19 de novembro de 1969. “Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha o Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tem tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouça o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado”, disse o Rei, aos prantos, cercado por jornalistas e fotógrafos.

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Se fosse hoje, talvez o mais famoso e emocionado discurso do Rei do Futebol poderia ser taxado de mimimi, narrativa esquerdista, papo vitimista. Mas Pelé tinha razão. O Brasil não cuidava – e ainda cuida muito pouco – dos mais vulneráveis. Nos últimos anos, isso se agravou. A pandemia da Covid-19 fez disparar a pobreza no Brasil. Dados divulgados em dezembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2021, o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou 22,7% na comparação com 2020. Já o número de pessoas em situação de extrema pobreza saltou 48,2% no mesmo período. Os aumentos foram recordes. Desde 2012, o País nunca havia registrado um avanço tão grande da pobreza e, sobretudo, da extrema pobreza. Em números absolutos, 11,6 milhões de brasileiros passaram a viver abaixo da linha da pobreza. Outros 5,8 milhões passaram a viver em condições de extrema pobreza.

As criancinhas, citadas pelo camisa 10 da Seleção, não só ficaram mais vulneráveis, como também tiveram retrocessos no ensino. As despesas e os investimentos na educação pública brasileira vêm diminuindo desde 2016. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que os investimentos públicos na área da educação ficaram em 5,4% em 2021. Essa porcentagem, porém, já deveria estar em 7% do produto interno bruto (PIB), segundo as metas do atual Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE determina que o investimento deveria aumentar progressivamente até atingir 10% do PIB em 2024. Não vai chegar.

Mesmo depois de mais de cinco décadas do apelo de Pelé, o Brasil é um vexame em ensino. No ranking de qualidade de educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o País ocupa a 60ª posição entre os 76 países avaliados. Em primeiro lugar está Cingapura, seguido de Hon Kong e Coreia do Sul. Na última posição está Gana. Enquanto o topo da lista ficou com os países asiáticos, as últimas 15 posições ficaram com os países sul-americanos Argentina em 62º, Colômbia, em 67º, e Peru em 71º lugar. O ranking foi definido a partir de resultados de testes de matemática e ciências aplicados nestes países. Além dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), foram analisados o TIMSS, dos Estados Unidos, e o TERCE, aplicado em países da América Latina.

O baixo investimento em educação e a má gestão dos recursos existentes perpetuam a miséria e a pobreza em uma parcela importante da população. Sem profissionais qualificados, o País é refém em uma ciranda de baixos salários, dependência do Estado e crescimento instável. Se o Brasil tivesse ouvido aquele conselho de Pelé, a situação hoje seria outra. Mais do que seus mais de mil gols, esse teria sido seu maior legado.