01/05/2025 - 11:37
Estudo aponta que o volume da tainha, cuja pesca é uma expressão da cultura açoriana em Santa Catarina, está abaixo do nível sustentável. Pela 1° vez, política de restrição à captura atinge pescadores artesanais.A canoa de remo Glória, construída há 140 anos, está a postos no rancho do Seu Getúlio, em Florianópolis, para a abertura da temporada da tainha. A partir desta quinta-feira (01/05), pescadores artesanais poderão capturar o peixe, em uma coreografia tradicional que envolve vigias, remadores, nadadores e moradores puxando as redes na praia. “Mas muitos vão ficar sem peixe””, prevê o pescador Ivanir Aroldo Faustino, de 52 anos.
Isso porque, pela primeira vez, a política do governo federal estabeleceu uma cota para a pesca artesanal de arrasto de praia – modalidade reconhecida como patrimônio imaterial de Santa Catarina. Este ano, os pescadores poderão capturar até 1,1 mil toneladas de tainha, cerca de 65% do volume registrado na temporada passada.
“Essa pesca é minha cultura, é a minha raiz”, disse Faustino, coordenador do rancho do Seu Getúlio, enquanto aponta para as fotos dos avós e do pai penduradas nas paredes. “É uma pesca comunitária, onde tudo é repartido.” Um único lanço de tainha pode mobilizar mais de 100 pessoas naquela praia.
O governo de Santa Catarina acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir o fim das cotas impostas à pesca artesanal de arrasto de praia. Na ação, argumentou que a modalidade é uma atividade de subsistência, não ameaça os estoques pesqueiros e está sendo alvo de tratamento discriminatório, já que as restrições incidem apenas sobre o Estado.
O ministro Gilmar Mendes rejeitou o pedido, sem analisar o mérito da questão. Segundo ele, havia outras vias processuais mais adequadas para tratar do tema. Diante da decisão, o governo catarinense pretende levar o caso à Justiça Federal.
A presidente da ONG Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil, defende que os limites de captura sejam estendidos a outros estados, embora entenda que Santa Catarina concentre o maior esforço pesqueiro na modalidade e, por isso, esteja no centro da discussão.
“Mas não dá para sustentar esse discurso de que ‘somos pescadores artesanais, estamos protegendo o meio ambiente’. Há inúmeros exemplos de momentos em que a pesca artesanal também foi predatória. Toda atividade pesqueira precisa de limites. O fato de ser artesanal não dá carta branca para retirar do mar o quanto quiser”, avalia Gil.
Estoque abaixo do sustentável
A pesca da tainha (Mugil liza) é considerada um dos maiores desafios da gestão pesqueira no Brasil, segundo um relatório técnico produzido pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e pela Fundação de Apoio à Universidade Federal do Rio Grande (Faurg). Isso porque a espécie é alvo de diferentes modalidades, tanto industriais como artesanais, ao longo do Sul e Sudeste brasileiro.
A tainha habita regiões lagunares e costeiras, como a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, e áreas do Uruguai. No outono e inverno, migra em direção ao norte em busca de águas mais quentes e salgadas, onde se reproduz. Durante esse percurso, forma grandes cardumes, uma estratégia que ajuda na defesa contra predadores e facilita a reprodução, tornando-se um alvo para os pescadores.
O relatório técnico publicado em 2023, com base em dados de 2022, aponta que o estoque de tainha está sobrepescado e sofrendo sobrepesca. “Isso significa que há menos peixes no mar do que o nível considerado sustentável, e que as capturas estão acima do limite que garantiria um rendimento sustentável”, explica Luís Gustavo Cardoso, professor do Instituto de Oceanografia da Furg e um dos autores do estudo.
Segundo o relatório, a estimativa é que a biomassa da tainha – ou seja, a quantidade total de peixes em peso – esteja cerca de 25% abaixo do nível considerado sustentável.
Com base nesses dados, uma portaria do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), aliada a reuniões entre representantes do setor no Grupo de Trabalho da Tainha, definiu um limite de 6.795 toneladas para a pesca, dividido em cotas entre diferentes modalidades de pesca nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Para o professor, a política de gestão pesqueira é essencial para evitar uma diminuição ainda maior na biomassa, afetando bruscamente o rendimento dos pescadores industriais e artesanais – o que poderia tornar a atividade economicamente inviável ou dependente de subsídios. A redução do estoque de tainhas também traz riscos ecológicos, já que a espécie se alimenta de detritos e serve de alimento para outros peixes e mamíferos aquáticos, como os botos.
“O recurso pesqueiro é uma fonte de proteína com baixa pegada ecológica em comparação a outras”, destaca o professor. “É claro que alguns métodos de pesca podem causar impactos, como a captura acidental de mamíferos marinhos ou a destruição de habitats. Mas esse não é o caso da pesca da tainha.”
Ritual climático
Em 2018, a tainha se tornou a primeira espécie marinha no Brasil com cotas de captura. A medida foi tomada com base em estudos científicos, pressão de ambientalistas e da sociedade civil, com o objetivo de controlar a pesca predatória e garantir sua sustentabilidade.
Neste ano, pela primeira vez, a pesca artesanal de arrasto de praia tem uma cota. Na ação do STF, os ministérios da Pesca e do Meio Ambiente argumentam que a medida “confere um direito de pesca com uma cota que é superior à média histórica” de 677,3 toneladas, garantindo a sustentabilidade ambiental.
A Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (Fepesc) contesta esses dados, afirmando que a média é 1,6 mil toneladas – maior, portanto, que a cota estabelecida. “Os pescadores estão apreensivos. Será que vai sobrar peixe para a gente? Será que o peixe vai chegar até aqui?”, questiona o presidente da federação, Ivo da Silva.
A dinâmica da pesca, argumentou da Silva, pode fazer com que muitos ranchos sejam prejudicados. Como os peixes migram de sul para o norte, é mais provável que os pescadores mais ao sul capturem as tainhas primeiro, podendo atingir a cota antes que os outros consigam. “Alguns não vão nem conseguir molhar a rede, como diz o pescador”, destacou da Silva.
O representante dos pescadores defende a sustentabilidade da modalidade devido às suas limitações. Segundo ele, é preciso um “ritual climático” para a pesca acontecer. “Tem que ter o vento sul para os peixes virem e, depois, tem que ter calmaria no mar para poder pescar. Além disso, as embarcações são a remo e a pesca acontece perto da praia.”
Na ação do STF, a Sea Shepherd Brasil reconheceu que a modalidade é realizada com embarcações rudimentares, sem o uso de motorização e com alto valor sociocultural. “No entanto, do ponto de vista do estoque pesqueiro, seu impacto não é desprezível, pois incide diretamente sobre cardumes reprodutivos da tainha durante a migração desovante, afetando a reposição natural da espécie.”
“Já vimos lanços grandes, alguns recordes de 40 toneladas. Esse é quase o limite, na temporada, para uma embarcação traineira [industrial]. A pesca artesanal pode causar muito impacto”, afirmou a presidente da Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil. O maior lanço da história de Santa Catarina ocorreu em 1984, na praia de Ingleses, em Florianópolis. Foram capturadas 120 mil tainhas, algo em torno de 180 e 300 toneladas.
Cultura indígena e açoriana
No dia 28 de abril, segunda-feira, estudantes de uma escola municipal foram conhecer o rancho do seu Getúlio na praia do Campeche, dentro do projeto “Cultura da pesca artesanal – compartilhando saberes”, uma das iniciativas culturais dos pescadores. Ivanir Aroldo Faustino contou que a história daquele local começou com seu Deca, um personagem importante em Florianópolis.
Na adolescência, segundo diversos relatos da comunidade, seu Deca, o pai de Getúlio, costumava se encontrar com alguns pilotos estrangeiros que pousavam suas aeronaves no Campeche, uma parada entre a rota Rio de Janeiro e Buenos Aires. Um deles era o autor do livro O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry – ou “Zé Perri”, como era chamado na região.
Após a morte do pai, Getúlio “comprou o rancho”, onde, além da pesca, criou um projeto para ensinar música, já que era integrante da banda da Aeronáutica. Ele morreu em 2018, deixando o rancho para sua esposa, Maria das Neves Inácio, a Dona Bia.
Faustino contou aos estudantes que a canoa Glória representa duas culturas. É formada por um tronco de Garapuvu, uma característica dos povos indígenas. Mas tem também uma bordadura na parte superior do casco, onde são fixados os bancos e os remos, uma herança açoriana.
Ainda contou aos estudantes que todos os peixes são compartilhados, cada um ganhando um “quinhão” conforme sua função, inclusive os membros da comunidade que ajudam a puxar as redes.
Disse ainda que algumas tainhas são guardadas no congelador do rancho para serem comidas durante a atividade de preparação para a safra, como organizar as redes. “Há duas semanas, comemos as últimas tainhas”, comentou. Agora tem início a próxima temporada, com o desafio de aliar tradição e conservação do oceano.