Haiti Jac-Ssone com jovens no bairro de Don de l amitié, na pequena cidade de Duchity, à oeste da capital Porto Príncipe

O haitiano Jac-Ssone com jovens no bairro de Don de l’amitié, na pequena cidade de Duchity, à oeste da capital Porto Príncipe, onde o pesquisador da UFRJ pretende construir casas ecológicas em regime de mutirão (Imagem de Arquivo pessoal/Jac-Ssone/direitos reservados)

Era fim de tarde de uma terça-feira quando a terra começou a balançar, levando mais de 300 mil edifícios ao chão e provocando uma multidão superior a 1 milhão de desabrigados no Haiti. O terremoto de 2010, que atingiu 7 graus na escala Richter, deixou um país abalado e com o desafio de enterrar cerca de 200 mil mortos.

O episódio completou exatos oito anos ontem (12) e está na memória do país. Justamente para que tragédia similar não se repita, o engenheiro haitiano Jac-Ssone Alerte, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), planeja implementar no Haiti um projeto de extensão voltado para a construção de moradias populares.

A iniciativa, que busca chamar a atenção para a necessidade de aprimorar as políticas habitacionais no país, será aplicada no bairro de Don de l’amitié da pequena cidade de Duchity, à oeste da capital Porto Príncipe. Foi lá que Jac-Ssone nasceu. A comunidade foi devastada em outubro de 2016 por outro fenômeno natural, o Furacão Matthew, que deixou mais de mil mortos no Haiti.

Ao visitar o bairro após o desastre, o engenheiro sentiu que era hora de colocar em prática um desejo antigo: contribuir para a melhoria daquela sociedade. “Era uma sensação de deserto. Era visível as cicatrizes no país inteiro. Ver as fachadas espalhadas, as barracas. E era como se nada estivesse acontecendo em termos de empenho para a reconstrução das moradias”, diz.

Mutirão

O projeto de extensão de Jac-Ssone envolve o início da construção da Vila Marie Celiane Alexis, que recebeu esse nome em homenagem à mãe do engenheiro que já faleceu. Para tanto, ele se articulou com lideranças locais e adquiriu um terreno junto com seu pai, onde irá aplicar a técnica solo-cimento em regime de mutirão para construir moradias seguras e resistentes a tremores e ventos fortes.

As casas também serão projetadas de acordo com as projeções do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (IPCC-ONU) para a região, isto é, preparadas para a maior incidência de dias quentes e ondas de calor, garantindo assim maior bem-estar aos moradores.

Já houve uma pré-seleção, com base em perfis socioeconômicos, dos 15 primeiros moradores que ficaram desabrigados em decorrência do furacão e que serão beneficiados para construir suas próprias casas. Também foi contratada uma empresa para furar um poço artesiano e garantir a disponibilidade de água antes do início das obras, previsto para o final desse ano.

A técnica solo-cimento envolve a utilização de terra crua como base para fabricação de tijolos ecológicos. Ela vem sendo estudada já há alguns anos na UFRJ como uma alternativa às técnicas convencionais empregadas pela indústria da construção civil. Uma das vantagens do método reside no fato de que a terra é um material que apresenta grande disponibilidade na natureza e baixo custo, além de boas propriedades térmicas.

Seria, portanto, mais sustentável ao meio ambiente. O projeto da Jac-Ssone toma por base as pesquisas de seu professor orientador, o engenheiro Leandro Torres Di Gregório, que já constatou os benefícios do uso da técnica solo-cimento a partir da mobilização de um mutirão. O desafio inicial foi adaptar as propostas para a realidade haitiana e agora é colocá-las em prática.

A construção por meio de mutirão também tem o papel de fomentar uma noção de pertencimento à comunidade, fortalecendo o espírito de equipe. “A autoconstrução ainda é muito forte no Haiti. E seria importante ter um grupo de assistência técnica para acompanhar as pessoas que constroem as suas próprias moradias. Isso não existe. E é difícil para uma pessoa que não tem conhecimento em engenharia fazer uma casa que seja adequada para resistir a essas cargas sísmicas e à força do vento”, avalia Jac-Ssone.

Ele explica que o Haiti está geograficamente localizado entre duas placas tectônicas e é um dos países do mundo mais vulneráveis a desastres naturais.

Terremoto

Jac-Ssone chegou ao Brasil em 2008 para estudar a língua portuguesa e acabou ficando. Ingressou no curso de graduação de engenharia civil da UFRJ e, uma vez formado, seguiu na instituição para dar sequência aos seus estudos no programa de pós-graduação em planejamento, gestão e controle de obras civis. Paralelamente, fundou com outros engenheiros a Jell Engenharia, uma empresa voltada para construções sustentáveis de impacto social.

No dia do terremoto, Jac-Ssone se encontrava no Brasil. Ele lembra que conseguiu as primeiras notícias dos familiares através de um amigo, que lhe enviou um e-mail detalhado a situação. Com problemas nos meios de comunicação do Haiti, o contato direto com seus parentes só ocorreu uma semana depois. Felizmente, estavam todos bem.

Os mesmos problemas de comunicação afetaram a chegada de informações a quem estava no Haiti. O major do Exército Brasileiro, Fabrício Gonçalez, que integrou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), conta que foi tudo numa fração de segundos, com um barulho muito alto seguido de um tremor que dava a sensação de estar sobre uma plataforma com um trem está se aproximando. “Me recolhi a um canto que me pareceu seguro naquele momento”. Na época, ele era capitão e subcomandante da companhia de fuzileiros que ficava em Cité Soleil, a maior comunidade de Porto Príncipe onde vivem cerca de 300 mil pessoas. O local foi um dos mais atingidos pelo desastre.

Segundo ele, não houve feridos na sua companhia e os socorros aos afetados nas proximidades começaram no mesmo dia. “Naquele momento nós ficamos sem comunicação nenhuma. No dia seguinte, na parte da tarde, foi que as patrulhas foram retomadas nas ruas e começamos a receber as imagens. E foi aí que tivemos a real dimensão dos estragos”. Foi também no dia seguinte que ele teve o conhecimento de que o edifício onde ficava a sede das Minustah havia caído e muitas pessoas envolvidas com a missão estavam desaparecidas.

Para Fabrício Gonçalez, do ponto de vista estrutural, as edificações não eram preparadas. “O estrago foi muito maior do que a intensidade do terremoto. Foram 7 graus na escala Richter e há exemplos no mundo de terremotos mais fortes com menos impacto. Dizem que havia 80 anos que não tinha um terremoto no país. Então, no último abalo, o Haiti tinha uma população muito menor”.

Para o Jac-Ssone, houve mobilização do poder público para garantir investimentos necessários que permitissem dar início o quanto antes à reconstrução dos prédios públicos, sobretudo na capital. Mas a maior parte da população no Haiti vive em zonas rurais. Segundo ele, não houve o mesmo empenho com as moradias populares em regiões afastadas, longe de Porto Príncipe. Em algumas localidades, o custo mensal do financiamento de uma casa popular teria sido superior ao salário médio das pessoas.

“Depois de um desastre natural, um desafio que se tem é a provisão habitacional. E no Haiti se faz de uma maneira que não é bem coordenada. Não conseguem dar uma resposta efetiva e com o tempo os gestores vão desaparecendo. Passado o sofrimento de um desastre natural, fica uma oportunidade de planejar o que não havia sido bem planejado antes. E hoje vemos ações pontuais”, diz o engenheiro. Ele acredita que se o seu projeto for bem sucedido, pode dar o exemplo da importância do planejamento e se converter em uma política pública que envolva e organize as populações vítimas de desastres.