06/06/2023 - 16:44
Jornalista que mergulhou na primeira onda das jornadas e foi preso por portar garrafa de vinagre, Piero Locatelli reflete sobre como uma mobilização iniciada à esquerda acabou dando vazão à extrema direitaMarco inicial de uma década vertiginosa no Brasil, as jornadas de junho de 2013 estão sendo agora reexaminadas em livros, reportagens e debates que buscam esmiuçar aquela explosão de forças sociais que produziu eventos políticos decisivos e que reverbera até hoje.
Uma testemunha da primeira onda das manifestações, contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo, é o jornalista Piero Locatelli, que cobriu de perto a dinâmica dos protestos e do Movimento Passe Livre (MPL) e acabou virando notícia ao ser preso pela polícia paulista por portar uma garrafa de vinagre – substância que atenua o efeito das bombas de gás lacrimogêneo.
Locatelli foi solto algumas horas depois, após pressão de entidades de representação dos jornalistas, e nas semanas seguintes mergulhou ainda mais fundo na cobertura dos protestos, o que rendeu um livro escrito à quente, lançado em julho de 2013 pela editora Companhia das Letras, sobre os eventos e seu principal catalisador, o MPL.
Em entrevista à DW, Locatelli detalha a lógica daquele movimento de jovens de esquerda críticos ao governo do PT, organizado de forma horizontal, sem símbolos tradicionais ou ligação com partidos e com foco total numa pauta única: revogar o aumento de vinte centavos da tarifa do transporte público paulistano. E reflete sobre como essas características constituíram, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da intensa mobilização inicial.
Esse modo de agir do MPL, diz Locatelli, abriu espaço para que milhares de cidadãos saíssem de suas casas e tomassem as ruas, “gente que não entraria numa manifestação na qual tivesse muitas pessoas com boné do MST”. E o grupo foi bem sucedido, forçando o então prefeito Fernando Haddad (PT), hoje ministro da Fazenda, a revogar o reajuste. Ele ressalta que, naquela altura, havia um sentimento de “muita esperança” nas ruas. “Ninguém estava muito cético ou cínico. Era um momento em que as pessoas acreditavam numa postura questionadora da política.”
Por outro lado, após conquistar seu objetivo, o MPL não expandiu sua pauta, evitou transformar seus membros em lideranças políticas mais amplas e se retirou das manifestações, também receoso com a proporção e a diversidade política que elas haviam assumido. “Como se você colocasse fogo num lugar e desses dois passos para trás”, diz Locatelli, que na época trabalha na revista Carta Capital e hoje é jornalista freelancer em Taipei.
O resultado, avalia, foi a abertura de um enorme vácuo político durante um período de intensa mobilização social, que não é ocupado pela esquerda tradicional – atônita e despreparada para lidar com o que acontecia –, mas sim por movimentos organizados de direita e pelo Ministério Público, que deram a tônica dos anos seguintes na política nacional.
DW: Há dez anos, você estava reportando sobre as manifestações e virou notícia como o jornalista que havia sido preso. Como você se envolveu nessa cobertura?
Piero Locatelli: Eu já vinha cobrindo manifestações em São Paulo, relacionadas ao movimento social ou nas quais já tinha gente de direita. Lembro de uma matéria que escrevi no 7 de setembro de 2012, quando fui ao Masp e lá estavam os caras do [grupo de extrema direita] Revoltados Online, que depois ficariam famosos.
Em junho de 2013, fui na primeira manifestação e já dava para sentir que não era aquilo com o que estávamos acostumados. Não era sem precedentes, pois haviam ocorrido manifestações em Salvador e Florianópolis sobre passagem de ônibus, e outras que acontecerem sem sindicatos, como em Jirau [contra a construção da hidrelétrica no Rio Madeira]. Mas uma mobilização muito intensa, sem sindicato, sem partido, não era comum naquela escala, e a gente percebeu que seria legal cobrir com atenção.
A prisão de alguma forma marcou seu trabalho?
Antigamente, odiava falar disso. Jornalista, via de regra, não quer ser notícia, e eu não queria. A primeira reação foi dar um passo atrás, não queria aparecer, queriam até gravar um [programa da Rede Globo] Profissão Repórter comigo. Falei com um ex-chefe meu e perguntei o que ele achava. Ele respondeu: 'você vai trabalhar agora como nunca trabalhou na vida, esquece disso'”. Nos meses seguintes consegui fazer matérias relevantes, foi um momento muito bom nesse sentido. E meu caso não foi isolado, muita gente também foi presa, a Giu [jornalista Giuliana Vallone] tomou um tiro [de bala de borracha próximo ao olho], o [fotógrafo] Sergio [Silva] perdeu um olho, casos mais graves.
O foco do seu livro foi a primeira a onda das jornadas, contra o aumento da passagem de ônibus. Que características desse movimento e do contexto da época produziram aquela explosão social?
Era um movimento catalisado por gente de esquerda que já não via nas referências tradicionais de esquerda o mesmo poder e a mesma simbologia que as pessoas de uma geração anterior viam. Uma geração mais nova, para quem o Lula ganhar o poder era dado, o poder era a esquerda naquele momento.
Eram pessoas que negavam elementos tradicionais de imagem e simbologia, como usar preto e não vermelho, não ficar em cima de um carro de som – por mais que eles não fossem antipartido.
Isso permitiu que um monte de gente entrasse junto, gente que não entraria numa manifestação na qual tivesse muitas pessoas com boné do MST. Era uma estratégia sobre a qual eles falavam abertamente, que só iriam conseguir derrubar a passagem se trouxessem mais gente, que normalmente não está na rua com os movimentos de esquerdas tradicionais. Nesse sentido, eles foram bem sucedidos.
Tem outros fatores que cooperaram. Era aquele momento de smartphone, começo de rede social, todo mundo filmava, todo mundo no Facebook com um ar meio utópico, abraçando acriticamente aquilo. Isso aconteceu em outros lugares do mundo, o Occupy Wall Street [em 2011], a Primavera Árabe [de 2010 a 2013].
E havia uma centralidade da questão urbana. O mais tangível das relações econômicas se dá em onde você mora, como é que se locomove. Naquele momento, a cidade teve uma centralidade de uma maneira que eu nunca vi, o que contribuiu muito.
De onde vinha essa aversão a partidos, lideranças e carros de som?
Essa tradição de esquerda não foi eles que inventaram, vem dos autonomistas da Itália da década de 70, da questão de repensar a organização trabalhista, dos protestos antiglobalização dos anos 2000.
Mas só um movimento com esse perfil poderia ter gerado o que aconteceu. Vamos imaginar um hipotético movimento de transporte ligado à esquerda tradicional e ao PT – não ia ter acontecido isso, tanto pela rejeição simbólica ao que eles representam, quanto pela tática. Não seria como aquela postura do MPL, “a gente tem uma pauta clara, a gente não vai negociar, e a gente vai até o fim em busca dela”. Não é a tradição, digamos, centralista democrática, mais padrão do movimento social brasileiro.
Esse modo de agir trouxe algo de positivo para a mobilização política? E de negativo?
Não aumentar a passagem é uma pauta muito palpável e, nesse sentido, muito agregadora. Além disso, o fato deles não usarem simbologias que tinham rejeição na época – não tinha foice e martelo, não tinha sindicalista da década de 80 em cima de um carro de som gritando para as pessoas – ajudou para que uma pessoa que tivesse simpatia com a pauta pudesse ir para a rua.
Agora, por ter uma pauta única, muito específica, talvez esteja também a maior fraqueza quando esse movimento acaba. Há um momento [depois da queda do valor da passagem] em que o MPL fala em fazer uma comemoração e não mais ir para a rua com essa galera. É como se você colocasse fogo num lugar e desses dois passos para trás. É honesto se você pensar na pauta deles e na maneira deles pensarem a política, mas ao mesmo tempo essa restrição leva ao que aconteceu.
Contrasta com o Chile, onde o [Gabriel] Boric é presidente, ele sai de uma manifestação com características muito parecidas. Em diversos outros lugares do mundo, vai ascender uma pessoa politicamente a partir de um momento desses. Não é uma crítica a nenhuma dessas pessoas, porque elas têm trajetórias coerentes nas vidas delas, mas ao mesmo tempo você não criou nenhuma liderança e deixou um vácuo político enorme, que veio todo mundo ocupar.
E, nesse vácuo, todo mundo agiu. Não foi esquerda tradicional, porque a esquerda tradicional não tinha maneira de ocupar aquele espaço. O [Guilherme] Boulos depois surge com o MTST. E você tem o MBL, o Vem Pra Rua. Abriu a porta e entra quem é organizado. Qual foi a pauta principal depois que caiu o aumento da passagem? A PEC 37, relacionada ao Ministério Público [a proposta retirava o poder de investigação do Ministério Público e o deixava somente nas mãos da polícia].
Como você hoje avalia a reação dos governos federal e da cidade de São Paulo à época, que eram comandados pelo PT?
Totalmente equivocada, por não saberem lidar com aquilo. O Haddad vai baixar a passagem contrariado, depois de muito tempo. História não funciona desse jeito, não dá para botar um what if se ele tivesse baixado a passagem duas semanas antes, mas a esquerda não soube lidar, talvez por estarem acostumados a lidar com movimentos que se davam de outra maneira. A Dilma teve outros problemas, ela com certeza não se deu bem com isso, mas é difícil falar se ela acertou ou errou, essa não avaliação não consigo fazer.
E a reação do governo estadual, que era comandado por Geraldo Alckmin, então no PSDB, e hoje no PSB e vice de Lula?
Foi muito ruim, a repressão policial foi um grande catalisador – e é engraçado se você pensar no Brasil de hoje. Uma polícia subjugada a ele acabou levando a isso. Foi um fracasso, porque o que ele queria era debelar os protestos.
O título de seu livro, lançado em julho de 2013, começa com o termo #VemPraRua, que era uma palavra de ordem daquela primeira onda das jornadas. No ano seguinte, Vem Pra Rua foi o nome escolhido para um movimento de direita, que depois apoiou o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro. Como vê essa evolução?
Esse termo é muito agregador. Vem pra rua, mas fazer o quê? Não é nem abaixo isso, nem abaixo aquilo. Tinha a ideia do que representava aquele momento, muita gente indo para a rua, mas por quê? Havia muita coisa acontecendo o tempo inteiro, diversos motivos. Talvez por isso o Rogério Chequer [cofundador do Vem Pra Rua] vá usar esse nome.
O que mais foi junho de 2013?
As pessoas esquecem, mas foi um momento de muita esperança. Ninguém estava muito cético ou cínico. Era um momento que as pessoas acreditavam numa postura questionadora da política.
Foi uma ebulição de politização para as pessoas, de um jeito ruim muitas vezes. Para qualquer pessoa que você pergunta sobre junho de 2013, todo mundo tem uma resposta. Todo mundo foi tocado por aquilo. Não vou dizer que deu tudo errado, mas depois as coisas deram muito errado.
O passe livre entrou na pauta da política institucional. Segundo um levantamento do jornal O Estado de S.Paulo, 72 cidades do país hoje adotam a tarifa zero, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, próximo da direita, quer implementar essa política pública na cidade. Como avalia isso?
Conforme você envelhece, vê pautas que eram muito de fora entrarem no meio do debate e começarem a ser tratadas de maneira aceitável, como legalização das drogas ou a questão do uso de bicicleta.
A questão do transporte como um direito do qual se deve usufruir sem necessariamente pagar é uma concepção cada vez mais forte. Isso reforça o argumento que estava colocado à época, que era uma questão de vontade política, e não uma questão financeira – como, por exemplo, o Haddad abordava, ele chegava com a planilha dele e falava “não dá”. Está se mostrando que é uma opção que nossa sociedade pode pactuar. Em 2013, a única cidade que tinha essa política que as pessoas conheciam era Maricá, no Rio de Janeiro. Hoje não é mais uma coisa de movimentos de jovens irresponsáveis, gente que não tem nenhuma ligação política com esse pessoal leva muito a sério.