Caro leitor, preste atenção aos seguintes números:

? Anualmente cerca de R$ 1,7 bilhão vão para o ralo com a sonegação de impostos dos combustíveis
? Cerca de 30% da gasolina vendida nos postos brasileiros traz algum tipo de adulteração, seja na quantidade excessiva de álcool, seja na mistura com solventes
? Atualmente o mercado clandestino é responsável pela comercialização de um terço do álcool hidratado consumido no Brasil
? A cada mês, uma média de 40 caminhões-tanque de combustível são roubados nas estradas brasileiras, o que significa uma perda anual de quase R$ 20 milhões para as distribuidoras
? 1.000 postos dos 3.700 com bandeira da Shell não compram uma gota de gasolina da própria distribuidora
? Quase 70% da gasolina produzida pela Refinaria de Paulínia, a maior do País, não paga um centavo sequer de impostos
? A BR Distribuidora só garante a qualidade do combustível vendido em menos de 25% de sua rede, ou 1.700 dos 7.200 postos em operação
? A Agência Nacional de Petróleo (ANP) possui um quadro de 52 técnicos para fiscalizar 28.500 postos de combustível, 202 distribuidoras e 13 refinarias em todo o território nacional
? Nos últimos anos, centenas de pequenas distribuidoras surgiram no País. Hoje, elas detêm 35% do mercado. Dessas, 72% operam com liminares
? Das 202 distribuidoras existentes no País, 80% não possuem condições financeiras e operacionais para atuar no setor

Esses números formam um retrato sem retoques do setor de distribuição de combustível do Brasil, o segundo maior do mundo e ?o mais desorganizado e ilegal do planeta?, como diz o inglês David Pirret, presidente da subsidiária brasileira da Shell. Sem meias palavras: o setor de distribuição de combustível está hoje sob o domínio do crime, que se manifesta por meio da sonegação, da adulteração e até do roubo puro e simples. Existem aí todos os elementos típicos da ação de uma máfia: advogados especializados em obter liminares, sentenças judiciais inexplicáveis, empresas de fachada e até condenados pela Justiça travestidos de empresários do setor. ?Trata-se de um escândalo nacional, da manifestação mais clara e visível da ausência completa de Estado?, afirma Júlio Bueno, diretor da área automotiva da BR Distribuidora.

Há sinais fortíssimos de que Bueno não exagera. O escritório de advocacia Monteiro e Filho, com sede em Recife, tem enviado correspondência para executivos do setor propondo usar a Justiça para o não-pagamento de impostos sobre combustíveis e anexa cópia de liminares concedidas para seus clientes.

Com suporte como esse surgiram distribuidoras de todos os tipos, geralmente com sede em cidades do Interior. Um exemplo: em Indaiatuba, Estado de São Paulo, nasceu uma delas, com o sugestivo nome de Chicago Comércio de Lubrificantes. Com um capital social integralizado de apenas R$ 5 mil, a empresa tem como sócia Aparecida Geraldo Martins, uma senhora aposentada com uma pensão do INSS de R$ 120. Em seu primeiro mês de funcionamento, a distribuidora já fez um pedido junto às refinarias estimado em R$ 20 milhões.

Uma espécie de inimigo público nº 1 no setor é Ari Natalino da Silva, dono da Petroforte, com sede em Campinas. Criada há apenas sete anos, suas dívidas beiram R$ 200 milhões. Ari simplesmente não paga o imposto. Recolhe uma parcela de, digamos, R$ 1 mil, e contesta a cobrança do montante devido, que passa a integrar a dívida ativa da Fazenda. No ano passado, o Sindicom e o governo paulista, através da Justiça, tentaram intervir na empresa. A operação, contudo, não foi à frente. Ninguém do setor aceitou o cargo de interventor. Três empresas de auditoria foram convidadas para a tarefa. Nenhuma aceitou.

Os fiscais da Fazenda que tentaram cobrar a dívida na porta da empresa recuaram, convencidos por argumentos, digamos, pouco ortodoxos. O empresário mostrou conhecimento farto sobre a rotina da família do fiscal (incluindo nome e endereço da escola onde os filhos estudam). Na hora de cobrar dos proprietários dos postos de gasolina, Silva envia uma equipe formada por brutamontes, que, segundo comenta-se em Campinas, andam armados. O caso permanece nas mãos da Justiça.

A atual situação desse mercado tem origem em 1995, quando o setor foi desregulamentado. Até então, um punhado de grandes empresas dominava a distribuição de combustível. Com a liberação, passou-se de um extremo a outro. Hoje, mais de 200 distribuidoras estão registradas na ANP, o xerife do setor de petróleo e combustíveis. ?O grande problema é que essa transição foi feita sem critérios?, diz James Freitas de Assis, gerente de relações setoriais da Shell. ?Estamos no meio do caminho entre a regulamentação excessiva e o mercado livre disciplinado.? Sem redes próprias, a grande maioria das novas distribuidoras vende combustível para os postos das concorrentes gigantes, como Shell, BR Distribuidora, Texaco, Esso e Ipiranga. O argumento para que os proprietários dos postos rompam a fidelidade com sua bandeira é superconvincente: preço mais baixo. As distribuidoras novatas tornam-se mais ?competitivas? graças à sonegação de impostos ou à adulteração. Cálculos do Sindicom, o sindicato que reúne as dez maiores distribuidoras de petróleo, revelam que o preço mínimo de um litro de gasolina em São Paulo deveria ser de R$ 1,30 para o consumidor, já incluindo o lucro da distribuidora e do varejista. Caso não recolha o PIS e o Cofins, o valor cai para R$ 1,19. Se conseguir mais um ?desconto? não pagando o ICMS, o preço vai a R$ 0,82. Acrescente 30% de solvente e o litro passa a custar R$ 0,60. ?Isso explica por que é possível encontrar postos vendendo gasolina a R$ 1,15. É um preço impraticável para distribuidoras que cumpram todos os requisitos legais e tributários?, diz Alísio Vaz, diretor do Sindicom e gerente da Ipiranga. O caso do álcool não é diferente. O preço mínimo ao consumidor deveria ser de R$ 0,94. Sem os impostos cai para R$ 0,63.

O principal caminho para fugir da ação do Fisco são as liminares. As pequenas distribuidoras dizem que o PIS e o Cofins são inconstitucionais e conseguem liminares para não recolher essas contribuições. O assunto já chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, diversas vezes, deu pareceres contrários. Essas decisões, no entanto, não criam jurisprudência. Então, cada liminar deve ser julgada separadamente ? o que dá uma longa sobrevida para a sonegação.

O caso do ICMS é mais grave. As distribuidoras utilizam um artigo da Constituição Federal. Segundo ele, o imposto não deveria incidir sobre a venda de combustíveis que se destinem a outros Estados. Percebendo a brecha, os Estados brasileiros criaram leis determinando que o ICMS deveria ser recolhido na refinaria e depois repassado ao Estado onde o combustível seria comercializado. Mais uma vez a indústria das liminares entrou em ação. Com elas, as distribuidoras não recolhem o tributo. O produto tampouco chega ao destino ? e, assim, o ICMS também não é pago por lá. Um negócio altamente rentável.

A partir daí, criam-se situações cômicas, se não fossem trágicas. A comarca de Aurora do Pará, município do Pará, por exemplo, já concede liminares para que distribuidoras de combustível locais adquirissem quase 27 milhões de litros de gasolina em outros Estados. Detalhe: o consumo médio mensal de Aurora é de cerca de 10 mil litros. A cidade comprou 270.000% de combustível além de suas necessidades. Está aí uma forte indicação de fraude. Ou então a pequena Aurora do Pará tem uma pujança econômica até hoje desconhecida. Outra dessas cidades ?emergentes?, também no Pará, é Tucumã. Lá, foram expedidas liminares permitindo a aquisição de 11,7 milhões de litros. O consumo mensal é de 50 mil litros.

Isso permite que as distribuidoras novatas registrem crescimento exponencial. A Acelub, de São Paulo, é maior do que a italiana Agip e, a continuar nesse ritmo, encostará na Texaco. Sua estratégia baseia-se em liminares. A empresa muda de nome com freqüência. Já foi Central e hoje usa a marca Aster. Seu proprietário, Carlos Alberto Santiago, tem encrencas com a Justiça ? encrencas seriíssimas, aliás. Em 1997, Santiago foi acusado de ser cliente de uma rede de prostituição de meninas menores de idade. A polícia chegou a ele depois de gravar conversas suas com a agenciadora das garotas. Condenado em outubro de 1999, recorreu e está em liberdade. Semana passada, Santiago envolveu-se de novo com a Justiça. Fiscais do ICMS autuaram uma de suas bases por sonegação.

A festa pode sofrer um duro golpe em julho, quando uma Medida Provisória entrará em vigor estabelecendo que os impostos devem ser recolhidos na própria refinaria. Mas o setor espera que as liminares entrem em cena de novo. Além da sonegação, outro fator que aflige o setor de distribuição de combustíveis é a adulteração. De acordo com as grandes distribuidoras, cerca de 30% da gasolina tem álcool ou solvente além da conta. A ANP contesta esses dados. De acordo com os testes de qualidade realizados pela agência, 92% da gasolina vendida no País está dentro dos padrões de conformidade. Por que há uma discrepância nas informações? ?Há uma questão comercial por trás disso?, diz Luiz Augusto Horta Nogueira, diretor da ANP. ?É mais fácil convencer o consumidor a não comprar determinada gasolina alegando problemas de qualidade do que alegando sonegação fiscal. Eu entendo que as grandes distribuidoras se queixem, pois elas sempre conviveram com altas margens de retorno, o que talvez não aconteça mais hoje.?

A ANP diz que está se estruturando para atacar o problema da qualidade no combustível. Firmou convênios com 14 entidades para realizar testes periódicos. Em 1999, efetuou cerca de 1.750 autuações em postos e outras 323 em 180 distribuidoras. As multas somaram R$ 5 milhões. Há 2 anos, o número de distribuidoras chegava a 400. Fechou diversas delas e hoje restam 202. Semana passada, a Arno Petro, de Artur Nogueira, interior de São Paulo, foi lacrada depois que os fiscais constataram a presença de combustível adulterado.

No final do ano passado, a ANP deu também um importante passo para regulamentar o setor. Em uma portaria de dezembro, definiu os critérios para atuação na área. As empresas terão de apresentar um capital social integralizado superior a R$ 1 milhão, uma base de tancagem com capacidade mínima de 750 metros cúbicos e situação fiscal em dia. Nogueira diz que, a cada três meses, com a ajuda do Sicafi, verificará a situação fiscal das empresas. Mal a portaria foi publicada os advogados acionaram suas máquinas. Hoje, seis distribuidoras já conseguiram liminares contra a portaria. Pouco? Nem tanto. As empresas têm até o final do ano para se adequar às novas regras. A ANP prevê uma avalanche de liminares quando o prazo estiver para se esgotar. Executivos do mercado acreditam que as medidas tomadas pela ANP e pelo governo podem surtir efeito a médio prazo, livrando o setor das mãos do crime.