27/10/2025 - 18:17
Participação popular na alocação de recursos municipais ganhou força após iniciativa precursora de Porto Alegre. Apesar de benefícios comprovados, proposta enfrenta desafios políticos para se consolidar.A ideia de destinar uma fração do orçamento municipal à execução de projetos propostos e aprovados pela própria população ganhou força no Brasil nas últimas décadas, país pioneiro a adotar este modelo de alocação de recursos.
O chamado orçamento participativo (OP) foi adotado por Porto Alegre em 1989, e, desde então levou a uma maior participação democrática em municípios de tamanhos, regiões e características distintas que replicaram a medida, dentro e fora do país. Estudos indicam que o modelo levou até mesmo à redução da mortalidade infantil em alguns cenários.
No entanto, enquanto a prática brasileira passou a servir de exemplo e avançar pelo mundo, muitos projetos nacionais acabaram enfrentando limitações e disputas políticas, levando a uma estagnação no número de municípios que de fato permitem à população decidir o destino dos recursos.
Benefícios sociais
Os desafios crescem apesar dos benefícios da prática. Um estudo de 2013 publicado na revista científica World Development sugeriu que o OP aumentou a proporção do orçamento público gasto em saúde e saneamento em 2 a 3 pontos percentuais nos municípios analisados, o que representou de 20% a 30% da média da amostra de quotas orçamentais desta categoria em 1990.
Diante disso, a pesquisa registrou uma queda significativa na mortalidade infantil entre uma e duas crianças para cada mil residentes – cerca de 5% a 10% da taxa total de mortalidade infantil no início do período em 1990.
Ainda que seja complicado estabelecer relação direta entre as questões, a descentralização de recursos representou melhora em indicadores, incluindo mais obras para saneamento e postos de saúde com acompanhamento pré-natal, avalia Luciana Andressa Martins de Souza, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Para se estabelecer o destino dos recursos, conselhos cidadãos se reúnem e discutem os problemas mais urgentes da população, criando oportunidades para melhor entender os problemas e demandas que afetam outros públicos. Para Souza, isso faz com que os prefeitos tenham uma noção qualitativa do que acontece na cidade, como nos casos de investimento em iluminação e creches.
“Essa priorização ajuda a explicar a queda na mortalidade infantil, pois os OPs promoveram investimentos em infraestrutura básica, como água e esgoto, reduzindo riscos sanitários”, afirmam os pesquisadores Vitor Castro, professor da Loughborough University e Fabiana Rocha, professora da Universidade de São Paulo (USP), que recentemente publicaram um artigo em revisão do tema no Brasil.
“OPs promoveram redistribuição de renda e inclusão social, beneficiando periferias e minorias”, apontam Castro e Rocha. “Eles também impulsionaram coesão comunitária, com participação de até 100 mil pessoas anualmente em algumas cidades, e elevaram a arrecadação tributária ao aumentar a confiança na gestão”, destacam.
Da ideia à prática
A aplicação do OP no Brasil não é uniforme. Alguns municípios destinam menos de 1% de seus recursos ao programa, enquanto outros somam até 5%. Outra dificuldade está nas tomadas de decisões. Entre conselhos que escolhem representantes para debater e fiscalizar a execução de propostas até ao voto online, há ampla diversidade de como realizar os processos.
Enquanto municípios menores costumam centralizar a deliberação da alocação de recursos, cidades maiores, como São Paulo, costumam dividir os OPs por regiões. No plano para 2026, cada uma das 32 subprefeituras da capital paulista terá R$ 10 milhões à disposição para projetos escolhidos pela população.
Castro e Rocha citam munícipios tipicamente urbanos, com densidade populacional alta, níveis educacionais elevados e entre 100 mil e 500 mil habitantes, concentrados no Sul e Sudeste, como aqueles em que os OPs tiveram mais êxito no Brasil.
“Esses locais exibem maior adesão inicial e longevidade dos programas graças a maior engajamento cidadão e capacidade administrativa”, apontam. Por outro lado, dificuldades surgem nas maiores capitais, devido à fragmentação política, burocracia complexa e interesses corporativos que diluem a participação.
Abandono dos programas gera retrocessos
Ao longo da aplicação, Souza aponta que OPs costumam enfrentar embates políticos assim como os processos que passam pelos legislativos locais. “Há inclusive conflitos. Em certos casos, vereadores se sentem ameaçados”, diante da transferência de poder à outra instância, indica.
O estudo de Castro e Rocha avaliou 248 municípios que adotaram o OP no Brasil entre 2000 e 2012. Destes, 167 abandonaram em algum momento – 15 dos quais foram retomados posteriormente. Apenas 32% dos municípios mantiveram o projeto durante todo o período analisado.
“Em municípios que abandonaram os programas, há evidências de retrocesso em indicadores sociais: aumento na mortalidade infantil e piora em saneamento”, apontam os pesquisadores. “A descontinuidade, associada a trocas de prefeito, fragiliza a coesão comunitária, com redução na participação popular e enfraquecimento da accountability, resultando em gastos menos alinhados a demandas locais”, explicam.
Segundo eles, as causas do declínio na ampliação dos OPs no Brasil incluem a rigidez fiscal imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou discricionariedade orçamentária e investimentos, e a estratégia política de usar os OPs como ferramenta eleitoral. Muitos municípios abandonam os projetos após os pleitos locais ou com a mudança de sigla à frente da prefeitura.
Modelo ganha apelo internacional
Pelo mundo, existem mais de 17 mil iniciativas de OP. Muitas citam a experiência da capital gaúcha como um ponto de partida. Nestes lugares, a consolidação e expansão da participação democrática costuma ser o principal argumento para defender a ideia.
Autora do livro recém-publicado “Justiça Orçamentária: Sobre a Construção de Políticas e Solidariedades de Base”, a professora da Universidade da Cidade de Nova York Celina Su destaca o Brasil como uma referência que abriu as portas para novas práticas. Através do Fórum Social Mundial (FSM), evento que Porto Alegre sediou em diversas ocasiões no início dos anos 2000, ela aponta que foi possível que “pessoas e políticos do mundo tivessem acesso a uma ideia básica, mas que ainda não haviam se dado conta”.
Um dos lugares que incorporou o orçamento participativo foi Nova York. Segundo a autora, o modelo surgiu na cidade americana há uma década, unindo demandas do movimento Ocuppy Wall Street, que pedia maior participação popular, e do Tea Party, grupo ligado ao Partido Republicano, que exigia maior prestação de contas do governo. Su aponta que o OP é decisivo em temas caros à população, como moradia acessível.
“É uma forma de agir no meio do caminho entre eleições e protestos”, defende ela. Diante a polarização política aguçada no país nos últimos anos, a autora acredita que estes espaços são uma forma de conciliar demandas e escapar de um cenário de disputa política. “É um jeito de conseguir coisas que queremos, e não apenas raiva”.
Na Polônia, onde o OP é obrigatório em municípios com mais de 100 mil habitantes, votações via orçamento participativo chegaram a ultrapassar 30% de participação em algumas cidades. No final de 2022, 85,6% das cidades polonesas com mais de 50 mil habitantes usavam o modelo.
“O orçamento participativo na Polônia está se tornando cada vez mais comum nos governos locais, o que aumenta o envolvimento dos moradores. A polarização política no nível central significa que os cidadãos são mais propensos a usar instrumentos de cooperação democrática e codecisão no governo local para influenciar sua realidade”, explica Monika Augustyniak, professora da Universidade Jan Kochanowski.
Segundo ela, isso se aplica em particular a projetos sociais e de saúde, à criação de espaços verdes, pequenos jardins ou infraestrutura local em seu entorno imediato. “O interesse pelo próprio espaço público e pelas necessidades sociais é certamente uma reação à insatisfação social com o exercício do poder no nível central. O instrumento do OP é uma espécie de resposta à insatisfação com o atual nível de democracia no país”, avalia.