Com um outsider da política que se declara um “libertário” da direita no comando do país, prometendo uma terapia de choque na economia e alçando a imagem de uma motosserra a símbolo do corte de gastos, a Argentina dá sinais de recuperação econômica após décadas de instabilidade e crises cíclicas. No mercado, porém, as contas já começam a ser feitas para tentar antecipar até onde irá o voo do presidente Javier Milei.
A recente decisão do governo de estimular que empresas e pessoas físicas retirem os dólares que mantêm debaixo do colchão e os injetem na economia sem risco de cobrança de impostos ou de ter que atestar a origem do dinheiro fez o país ocupar destaque no noticiário mundo afora. A ideia, segundo o ministro da Economia, Luis Caputo, é que o dinheiro seja usado para o consumo, sustentando o crescimento e a ampliando a arrecadação de impostos.
Os primeiros resultados de um ousado programa de corte de gastos, com redução de ministérios, demissão de funcionários públicos e medidas de desregulamentação da economia que se somaram a um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) têm ajudado a transformar a imagem de Milei, visto por muitos como uma figura caricata. A expectativa é que o país vizinho, um dos maiores parceiros históricos do Brasil no Mercosul, cresça em torno de 5% este ano.
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O avanço da pobreza
Internamente, porém, a Argentina está dividida. Milei, que assumiu a presidência no final de 2023, tem apoio de cerca de metade da população e vem conseguindo crescer politicamente, apesar do alto custo das medidas adotadas até aqui, em especial aquelas voltadas para a camada mais pobre da população. Há uma semana, seu partido, o Liberdade Avança, venceu as eleições legislativas em Buenos Aires. A pobreza avançou na Argentina, chegando ao maior patamar em duas décadas, após o país viver a pior recessão da América Latina nos últimos anos.
“O ajuste de gastos em termos reais foi realmente notável, apesar de o corte nas aposentadorias ser questionado. Qualquer que seja o governante no futuro, ele terá que ser um suicida para voltar ao esquema anterior de grandes déficits públicos”, avalia o pesquisador Fábio Giambiagi, da Fundação Getúlio Vargas.
Autor de um estudo recente sobre a economia argentina, Giambiagi destaca que o gasto público primário no país diminuiu 27% em termos reais em 2024 (o equivalente a 4,5% do PIB), a inflação mensal cedeu de 26% em dezembro de 2023 para algo perto de 3% e o setor externo reagiu em 2024 devido às exportações agropecuárias, de petróleo e minério. Isso tem sustentado o avanço de Milei.
O controle do câmbio
No entanto, a batalha do país após décadas de crises cíclicas está longe de ser vencida. “No curto prazo, a Argentina está de vento em popa”, afirma Giambiagi. Ele alerta, porém, que há dúvidas se isso se sustentará no médio e longo prazos. “Governar a Argentina é controlar o câmbio. Isso é um axioma da economia argentina”, diz.
A lógica costuma ser a seguinte: o governo controla o câmbio, a população fica tranquila, pode viajar e gastar os dólares que costuma guardar em casa por não confiar no sistema bancário, o governo fica popular e a vida segue.
Mas, com base na história do país nos últimos 60 anos, esse caminho tem um custo no final. “Quando o governo controla o câmbio, a economia fica anestesiada durante um tempo, mas isso se reverte lá na frente”, prossegue Giambiagi. O argumento da gestão Milei para sustentar que desta vez será diferente é o sucesso do controle dos gastos públicos, com redução do déficit primário.
O que os analistas questionam é o fato de que, com o peso argentino apreciado, aumenta o fluxo de turismo no exterior enquanto o de estrangeiros na Argentina diminui, as importações aumentam e os ganhos com exportações são menores. Para Giambiagi, o país vive uma “paz cambial” porque houve uma injeção de recursos a partir do acordo com o FMI, o que reduz as especulações com a moeda local, além de Milei contar com a simpatia do Tesouro dos Estados Unidos e do presidente Donald Trump.
“O problema é como será daqui a três ou quatro anos, quando a Argentina tiver que começar a pagar para o FMI”, observa Giambiagi. “Os números que constam no acordo com o fundo são um conto de fadas. Tudo é lindo e vai dar certo…”, acrescenta. Mas ele já vê sinais de que a realidade pode não ser bem assim, sobretudo em função do forte crescimento das importações e do menor ritmo das exportações. “Mas quem está preocupado em olhar lá na frente, em 2028? O mercado olha o curto prazo. Eu não vejo os números do FMI se confirmarem”, diz.
Ao contrário do que acontece na Argentina, o programa de apoio do FMI ao Brasil no passado envolveu fortes desvalorizações da moeda local. “Isso foi importante e explica as trajetórias que tivemos nos anos seguintes”, destaca o pesquisador. Mesmo que tudo corra bem por lá, isso não deve mudar muita coisa para o Brasil no curto prazo, defende Giambiagi. “Há uma incompatibilidade entre Milei e o presidente Lula. Há vínculos comerciais que se manterão, mas se os dois não se falam, há uma série de avanços potenciais que ficam dificultados pelas circunstâncias.” Como se diz na Argentina, é preciso ter duas pessoas para dançar o tango.
Mix de sentimentos
Para o conselheiro internacional Hussein Kalout, do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), ainda existe um mix de sentimentos em relação ao governo de Milei.
“Há uma percepção entre os argentinos de que as políticas adotadas são endereçadas a setores empresariais específicos, aliados do governo”, argumenta. “O plano argentino, apesar de demonstrar algum sucesso até aqui, está longe de ser uma unanimidade. Os cortes nos gastos prejudicaram as classes mais baixas, enquanto para determinados segmentos empresariais não foram adotadas medidas mais duras”, completa.
O governo Milei também é observado com atenção pelo ex-presidente do Banco Central brasileiro Roberto Campos Neto. Para o homem responsável pelo BC no governo de Jair Bolsonaro, a valorização do peso argentino é um “probleminha” que precisa de ajustes, disse ele em entrevista à rádio Jovem Pan. No mais, Campos Neto considera que país de Milei “está no caminho correto”.
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