É muito mais do que simplesmente uma medida econômico-financeira equivocada e uma arrecadação frustrada.
Em um governo com dificuldade de fazer com que realidades positivas sejam traduzidas em percepções favoráveis, em que autoridades não conseguem coordenar as expectativas do mercado financeiro, uma oposição altamente conectada torna o fake crível e tudo cai na conta e na popularidade do presidente Lula, não há margem para erros básicos como o visto na última semana e nos últimos meses.
E não é um super marqueteiro à frente da Secom (Secretaria de Comunicação Social), por mais bem intencionado que seja, que vai resolver sozinho. Quando os problemas de comunicação ultrapassam as barreiras institucionais e se instalam nas relações pessoais, tudo fica mais difícil.
+PlatôBR: racha por causa do IOF expõe péssima relação entre Fazenda e BC
Fazenda e Banco Central em atrito
A barbeiragem da equipe econômica, na quinta-feira, 22, no anúncio do aumento do IOF, junto com a contenção de gastos, mostra como a falta de sintonia interna pode comprometer o resultado de uma ação de governo. Esse tipo de desacerto, a história recente demonstra, vez por outra interfere na condução dos assuntos do poder.
Desavenças, contornáveis ou não, cara feia, brigas, embates mais duros e até aquele clima de “não convide para mesma mesa” sempre pautaram o dia a dia entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central, pelo menos nos últimos 30 anos.
Que o digam o ex-ministro Joaquim Levy e o ex-diretor de Política Econômica Afonso Beviláqua, que quase partiram para as vias de fato; ou o ex-ministro Guido Mantega e o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, que nunca se curtiram; ou as divergências do ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel com o ex-presidente Arminio Fraga, e as do ex-secretário do Tesouro Arno Augustin e do ex-presidente Alexandre Tombini. Mas isso não chegava a abalar a popularidade no Palácio do Planalto.
Então, se hoje o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, não tolera o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, fato dado como certo entre os analistas de plantão, isso não precisa ser necessariamente um problema. Mas os desdobramentos desse sentimento no exercício das respectivas funções, sim.
O círculo do poder em Brasília tem uma dinâmica própria que o universo financeiro que orbita pela Faria Lima, em São Paulo, tem dificuldade em processar. As coisas não são tão cartesianas, é verdade. Política e economia interagem e, por vezes, deixam as análises turvas. Afinal, o mercado quer lógica. Cabe ao governo guiar o mercado e fazê-lo enxergar melhor.
Impulso para a economia
Dois momentos recentes ajudam a entender melhor esse ponto, mas é preciso destacar uma sutiliza entre eles. O primeiro foi a trapalhada na divulgação do pacote fiscal no final de 2024. Grosso modo, é possível resumir da seguinte forma: o presidente Lula (PT) acha que o mercado financeiro não gosta dele, enquanto analistas e investidores cobram maior compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas e reforço do chamado arcabouço fiscal.
Haddad promete entregar e cria expectativas positivas; mas após semanas de discussões públicas onde o governo critica as propostas do próprio governo, divulga-se um conjunto de medidas considerado dúbio do ponto de vista da contenção de despesas e que ainda combina um impulso para economia com a promessa de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil por mês.
Resultado econômico: cotação do dólar batendo recorde histórico, choque de juros e expectativas de inflação desancoradas. Resultado político: enfraquecimento da imagem do ministro da Fazenda, fiador da política econômica perante o mercado. Ali, ficou a sensação de que Haddad não tinha força suficiente para convencer o presidente das medidas econômicas necessárias, que a opinião dos ministros palacianos importava mais e, no final, que a culpa de tudo era de Lula, que tinha a palavra decisiva na economia.
O PSD, partido da própria base de apoio do governo, aproveitou o momento para fragilizar ainda mais Haddad. O presidente da legenda, Gilberto Kassab (PSD), criticou publicamente o ministro da Fazenda. Na Faria Lima ficou a certeza de que Haddad até tenta, mas não consegue convencer o chefe que, agora, só pensa em 2026.
A história se repete
Cinco meses depois, a história se repete: o mercado segue cobrado sinais de compromisso fiscal e de que será possível cumprir as metas de controle de gastos previstas para o ano, enquanto Lula segue achando que o mercado não gosta dele, mas depois de dois anos de pendenga com o BC presidido por Roberto Campos Neto, indicado na gestão anterior, agora conta com o novo presidente Gabriel Galípolo para tentar refazer essa relação.
Os ministros da Fazenda e do Planejamento, por sua vez, discutem os cortes nas despesas do governo federal orçadas para 2025, desta vez, de forma mais reservada; e na última semana, junto com o corte de gastos, o anúncio do aumento do IOF (imposto sobre operações financeiras) para elevar a arrecadação e compensar frustação de receitas.
Resultado econômico: a equipe econômica teve que voltar atrás em parte das medidas anunciadas e, com isso, terá que arrumar uma forma de compensar a perda de receita esperada para 2025 e 2026 com o aumento do IOF; os mercados reagiram mal com bolsa caindo e dólar subindo e as incertezas foram reforçadas.
Resultado político: ficou explícito o que já se comentava nas mesas de operações sobre a relação ruim entre Fazenda e Banco Central, cresceu a percepção de que o BC está isolado, já que Gabriel Galípolo só soube da mudança no IOF durante a entrevista da equipe econômica; e ficou a impressão de que a opinião dele vale menos para o presidente Lula. Galípolo e os diretores do BC haviam se manifestado em encontros nos últimos meses com o mercado contra qualquer alteração no IOF.
Mínimos deslizes
Entre esses dois momentos há: i) um esforço grande do governo para se reconectar com as necessidades da população e reverter as avaliações negativas nas pesquisas de opinião pública; ii) os acertos políticos antecipados para a disputa eleitoral de 2026; iii) muita incerteza em relação à gestão de Gabriel Galípolo no BC e de Haddad, na Fazenda. Em paralelo, há uma oposição conectada, que surfa bem melhor do que o governo nas redes sociais e aproveita os mínimos deslizes para criar suas próprias narrativas, nem sempre verdadeiras, e desacreditar o governo.
Alheio a todos detalhes técnicos, econômicos e às manipulações tecnológicas está o cidadão comum. Ele consome todo esse enredo, segmentado em forma de posts que carregam leituras próprias de quem os produz, e que, no final, o induz a concluir que a culpa de tudo o que está errado é do presidente.
Certa ou errada essa ilação, ela deveria servir de motivo para uma profunda reflexão no governo. Afinal, se lá atrás, o fato de a então presidente do PT, Gleisi Hoffmann, não gostar do ministro Haddad e atacar, dentro e fora do governo, a política defendida por ele afeta o presidente Lula, agora, a relação ruim entre Haddad e Galípolo, Fazenda e Banco Central não é diferente.
Divergências à parte, o que um pensa do outro não deveria deixar espaço para que o presidente do BC seja surpreendido com o anúncio do uso de um imposto que é tipicamente regulatório e que tem repercussão no mercado cambial para fins arrecadatórios. Os dois podem sair deste episódio enfraquecidos ou com a imagem abalada, mas, politicamente, quem perde é o presidente Lula e, economicamente, a sociedade.