19/08/2025 - 6:18
Em 55 anos de carreira, a escritora inglesa escreveu 66 romances policiais, 153 contos e mais de 30 peças. Até hoje, a “Rainha do Crime” inspira autores em todo o mundo, como o brasileiro Raphael Montes.Há exatos 50 anos, o jornal The New York Times publicou, na edição do dia 6 de agosto de 1975, um obituário em sua primeira página. Não era a primeira vez, tampouco seria a última, mas aquele necrológio chamou a atenção por ser de um personagem fictício: Hercule Poirot.
No Brasil, o Jornal da Tarde também prestou homenagem ao detetive belga. “Poirot não morreu de morte natural. Quem o matou foi Agatha Christie”, anunciou a nota de falecimento, referindo-se à escritora inglesa popularmente conhecida como “Rainha do Crime”.
Os anúncios faziam referência à publicação de Cai o Pano, que chegou às livrarias no dia 15 de outubro de 1975. “Raras vezes Poirot foi tão brilhante”, afirma Jean Pierre Chauvin, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Por que ler Agatha Christie (2024). “O obituário comprova sua relevância. Foi capaz de romper os limites da ficção.”
Embora tenha sido publicado em 1975, Cai o Pano foi escrito na década de 1940. Durante a Segunda Guerra, Agatha Christie escreveu Cai o Pano, o último caso de Hercule Poirot, e O Crime Adormecido, o derradeiro mistério de Jane Marple – seus dois personagens mais famosos.
Em sua autobiografia (1977), ela confessa que escreveu Cai o Pano pensando em Rosalind Hicks, sua filha única, e O Crime Adormecido em Max Mallowan, seu segundo marido. Por precaução, trancou os dois originais no cofre de um banco. A ideia era publicá-los só depois de sua morte.
Cai o Pano, porém, foi publicado no dia 15 de outubro de 1975, 89 dias antes de sua partida, no dia 12 de janeiro de 1976. O Crime Adormecido foi lançado postumamente, em 1976.
“Meio século depois, Agatha Christie continua insuperável. Não há ‘herdeiros’ à sua altura”, prossegue Chauvin. “Sua obra não se reduz ao jogo de gato e rato. Retrata as contradições do ser humano.”
Aposta inusitada
A inspiração para criar Poirot partiu dos refugiados belgas que conheceu na Inglaterra. Em homenagem ao herói grego, batizou o detetive de Hercule. Quanto ao sobrenome, dizia não se lembrar de sua origem. “Não sei por que me decidi por Poirot”, admitiu em sua autobiografia, escrita ao longo de 15 anos – de 1950 a 1965. “Se me veio por acaso ou se vi em algum jornal.”
Poirot protagonizou 33 romances – o primeiro foi O Misterioso Caso de Styles (1920). Curiosamente, Agatha Christie levou quatro anos até convencer algum editor a publicá-lo. Seis editoras rejeitaram seu romance de estreia. “Sou provavelmente o maior detetive do mundo”, gabou-se Poirot em O Mistério do Trem Azul (1928).
Outra curiosidade: O Misterioso Caso de Styles nasceu de uma “aposta” entre Agatha e Margareth, sua irmã. “Acho que você não conseguiria [escrever uma história de detetive]”, desafiou a primogênita. “Gostaria de tentar”, afirmou a caçula. “Bem, aposto que não vai dar certo”, Madge deu de ombros. Se tivesse apostado, teria perdido.
Cai o Pano foi o primeiro livro de Agatha Christie que Jamie Bernthal-Hooker, professor de Escrita Criativa da Universidade de Suffolk, na Inglaterra, leu quando tinha oito anos. “Alguns escritores policiais se destacam pela trama. Outros, pelos diálogos. Outros, ainda, pelos personagens. Mas, ninguém alcançou o nível de excelência de Agatha Christie nas três categorias”, garante o autor de obras como Agatha Christie: A Companion to the Mystery Fiction (2022), entre outros.
“Costumava ser moda criticá-la por ser uma autora popular. Embora seus livros sejam fáceis de ler, eles não são simples. Dizia muito em pouquíssimas palavras”, acrescenta.
Pelo mundo afora
De 1920 a 1975, Agatha Christie publicou 72 romances. Desses, 66 são policiais e seis são românticos, escritos sob o pseudônimo de Mary Westmacott. Noite Sem Fim (1967) foi escrito em seis semanas. Já Ausente na Primavera (1944) em três dias! Não bastasse, a autora britânica ainda escreveu contos. Foram, ao todo, 153 narrativas curtas, divididas em 14 antologias.
Escreveu, também, mais de 30 peças. A mais famosa é A Ratoeira. Estreou em 1952 e continua em cartaz até hoje. O sucesso só não é ininterrupto porque, em 2020, a temporada foi cancelada por causa da covid-19.
Segundo a Agatha Christie Ltda, a autora já vendeu dois bilhões de exemplares – um bilhão em inglês e outro nos mais diversos idiomas, como o português.
Só tinha uma coisa que Agatha gostava tanto quanto escrever: viajar. Em 1922, deu a volta ao mundo em companhia do primeiro marido, Archibald Christie, de quem tomou emprestado o sobrenome famoso. Seu nome de solteira é Agatha Mary Clarissa Miller.
Em suas viagens, começou a rascunhar alguns de seus romances mais famosos. A inspiração para Assassinato no Expresso do Oriente (1934) surgiu no Natal de 1931, em Istambul, na Turquia, no meio de uma nevasca. Já Morte no Nilo (1937) nasceu durante um passeio de férias, em 1933, no Cairo, a capital do Egito, em companhia de Max e Rosalind.
Embora gostasse de viajar, nunca conheceu o Brasil. Nem ela, nem Poirot. O detetive estava de malas prontas para o Rio, mas cancelou a viagem por causa de uma visita inesperada. Isso aconteceu em Os Quatro Grandes (1927).
Agatha Christie não conheceu o Brasil. Mas, seu primeiro marido, sim. Archibald Christie visitou o Rio de Janeiro, em companhia da segunda mulher e do filho do casal, em 1947. Foram 39 dias: de 2 de agosto a 10 de setembro. A família ficou hospedada no número 204 da Rua Saint Roman, em Copacabana.
Apesar de nunca ter ido ao Brasil, o país é um dois únicos do mundo que possuem embaixadores de Agatha Christie, além dos Estados Unidos. O brasileiro é Tito Prates; o americano, Christopher Chan. Ambos foram nomeados por Mathew Prichard, filho de Rosalind e neto de Agatha. “Como embaixador, sou responsável por divulgar e fiscalizar a obra dela em nosso país”, afirma Prates, autor de Agatha Christie – Uma Biografia de Verdades (2022). “Houve editoras que tentaram burlar direitos autorais e peças que foram produzidas sem licença.”
Colapso nervoso
Prates é autor da primeira e única biografia da autora inglesa escrita em português. Nela, o biógrafo revisita um dos episódios mais enigmáticos da vida de sua biografada: seu desaparecimento, por onze dias, em 1926.
As hipóteses são muitas: de jogada de marketing a tentativa de suicídio. Em sua autobiografia, ela não comenta o caso. Diz apenas: “Odeio me lembrar do ano seguinte. Quando uma coisa dá errado, tudo dá errado.” O tal “ano seguinte” foi 1926. Em abril, ela perdeu a mãe, Clara, vítima de bronquite. Já tinha perdido o pai, Frederick, aos 11 anos.
“Estava deprimida a ponto de chorar porque perdeu a lista da lavanderia ou porque o carro não pegou de primeira”, conta Prates. Quatro meses depois, Archie confessa que está apaixonado por outra, Nancy Neele, e pede o divórcio. Foi demais.
Na manhã de 4 de dezembro, o Morris Cowley da escritora foi encontrado abandonado perto do lago Silent Pool. A polícia chegou a oferecer uma recompensa de 100 libras para quem desse alguma pista sobre o paradeiro dela.
No dia 15, foi reconhecida por um funcionário do hotel Swan Hydropathic, em Yorkshire, a 400 quilômetros de casa, em Berkshire. Ela se hospedou sob o nome de Theresa Neele – o mesmo sobrenome da amante do marido. “Durante um ano esperei que Archie reconsiderasse sua atitude. Mas ele não fez. Assim terminou meu primeiro casamento”, relata em suas memórias.
De quadrinhos a audiolivros
Todos os anos, Agatha Christie vende, segundo estimativas da empresa que administra sua obra, 4 milhões de livros. Só no Brasil, sua obra é publicada por três editoras: Harper Collins, L&PM e Globo Livros.
Na última edição da Bienal do Livro, que recebeu 740 mil visitantes e vendeu 6,8 milhões de exemplares, a escritora ganhou um escape room. A proposta era descobrir quem envenenou a Madame Scarlet no dia do seu aniversário!
“Uma autora tão relevante, com um universo tão rico, precisa ser trabalhada em outros formatos”, afirma Alice Mello, editora da Harper Collins.
Entre outros títulos, a editora disponibiliza a coleção completa (38 volumes), o box As Viagens de Poirot e Histórias de Miss Marple (2023), antologia de contos escritos por 12 autoras contemporâneas. Em setembro, mais um lançamento: Agatha Christie – Mais de 100 Mistérios Interativos.
Sua obra está disponível em audiobooks e graphic novels. Só a Audible oferece 14 títulos em português – O Misterioso Caso de Styles é narrada por Marco Ricca e Thomás Aquino. Os quadrinhos são sete. Quem gosta de Assassinato no Expresso do Oriente, pode escolher: a versão adaptada e ilustrada por Bob Al-Greene, ou a roteirizada por Benjamin Von Eckartsberg e desenhada por Tsai Chaiko.
“Continua a servir de inspiração para muitos autores. Se hoje temos Freida McFadden e Gillian Flynn é porque, um dia, tivemos Agatha Christie”, afirma Amanda Orlando, da Globo Livros. “Nenhuma outra abriu tantas portas.”
Dos 12 títulos publicados pela Globo Livros, o mais vendido é, de longe, E Não Sobrou Nenhum (1939), anteriormente conhecido como O Caso dos Dez Negrinhos.
Poirot não morreu
Orlando citou as americanas Freida McFadden e Gillian Flynn. Mas poderia ter citado, entre tantos, a inglesa Sophie Hannah e o brasileiro Raphael Montes. Em 2014, quase 40 anos depois de Cai o Pano, Hannah “ressuscitou” Poirot em Os Crimes do Monograma. “Sou devota desde que li O Corpo na Biblioteca aos 12 anos”, relata. “Inventar novos mistérios para Poirot é a maior honra da minha vida.”
De lá para cá, Hannah escreveu Caixão Fechado (2016), O Mistério dos Três Pedaços (2018), The Killings at Kingfisher Hill (2020) e Hercule Poirot’s Silent Night (2024). No dia 23 de outubro, publica The Last Death of the Year.
“O maior desafio foi escrever como eu escreveria. Queria manter o Poirot como Agatha Christie o criou porque ele é perfeito. É perfeito, mas não pertence a mim, pertence a ela. O jeito foi inventar o Inspetor Catchpool”, explica.
Quem matou?
No Brasil, o escritor e roteirista Raphael Montes é o primeiro a admitir que a autora que mais influenciou sua escrita foi Agatha Christie. Quem o apresentou à “Rainha do Crime” foi sua tia-avó, Iacy, quando ele tinha 12 anos. Antes disso, seu autor predileto era Arthur Conan Doyle, o criador do detetive inglês Sherlock Holmes.
“Foi com Agatha Christie que aprendi a colocar pistas ao longo da história e, ao final dela, surpreender o leitor com uma grande virada”, explica o autor de Suicidas (2012), Dias Perfeitos (2014), Bom Dia, Verônica (2016) e Uma Família Feliz (2024).
Durante a pandemia, Montes releu a obra completa da autora. “Não costumo acertar a identidade do assassino”, confessa o autor de um milhão de livros vendidos. “Para piorar, minha memória não é das melhores. Ou seja, tinha esquecido a maioria dos finais. O fato de ser um autor policial não me ajuda a desvendar os mistérios de Agatha Christie.”
Em carne, osso e bigode
Os livros de Agatha Christie inspiraram um sem-número de adaptações para o teatro, o cinema, a TV e o streaming. A última aparição pública da autora, inclusive, foi na pré-estreia de Assassinato no Expresso do Oriente (1974), em Londres. No clássico de Sidney Lumet, quem interpretou Hercule Poirot foi Albert Finney.
O personagem já foi interpretado por incontáveis nomes: de Peter Ustinov, o favorito de Prates, a David Suchet, o predileto de Montes. O primeiro atuou em três longas e dois telefilmes; o segundo protagonizou uma série de TV. Atualmente, quem dá vida ao detetive belga é o ator inglês Kenneth Branagh. Foram, até o momento, três filmes: Assassinato no Expresso do Oriente (2017), Morte no Nilo (2022) e A Noite das Bruxas (2023).
“Atribuo o sucesso dela a três fatores: à qualidade de suas histórias, ao volume de sua produção e à atemporalidade de sua obra”, afirma Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM. “Seus livros não envelhecem nunca.”
A editora gaúcha disponibiliza em seu catálogo 101 títulos da autora, 61 deles publicados na versão pocket. “Sempre haverá uma história de Agatha Christie sendo contada em algum lugar do planeta”, pontua Machado.