24/10/2025 - 5:12
Execução do jornalista nos porões da ditadura gerou comoção pública que rompeu os nichos da militância.No fim da tarde de 25 de outubro de 1975, o Serviço Nacional de Informações (SNI), em Brasília, recebeu uma mensagem importante do comando do Exército em São Paulo. Segundo o comunicado, o jornalista Vladimir Herzog havia se suicidado por volta das 15h nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o famigerado DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão que funcionou durante a ditadura.
Era mentira. Conforme descobriu-se logo depois o jornalista foi torturado e executado por militares, que depois forjaram uma cena para tentar emplacar a narrativa de que ele teria se enforcado nas dependências do órgão. Herzog tinha 38 anos, era diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura, a emissora pública paulista, e professor de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP).
Na véspera, dia 24 de outubro de 1975, ele havia sido convocado pelo Exército a prestar depoimento sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro, então na ilegalidade. Apresentou-se voluntariamente ao quartel general do Exército em São Paulo na manhã do dia seguinte, onde funcionavam as instalações do DOI-CODI. Dali, não sairia com vida.
A repercussão da morte de Herzog acabou rompendo a bolha da militância. Ele era uma figura pública, tinha carisma e conexões sociais importantes. Além disso, visto como alguém pacífico e um pai de família – casado e pai de dois filhos pequenos. “O assassinato de Herzog foi o catalisador da volta da democracia”, afirmaria, anos mais tarde, o rabino Henry Sobel (1944-2019).
Memória, protesto e narrativas
“As ações de memória do Vlado são muito imediatas. Ele é a cara da violência, da repressão”, comenta a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora no Serviço Social da Indústria (Sesi).
Para a historiadora, a comoção decorrente do assassinato de Herzog acabou ultrapassando os nichos da esquerda porque, antes dele, o discurso da repressão “colava muito fácil” na classe média ao dizer que estava combatendo “os radicais”, os guerrilheiros. Ela entende que, “a partir do momento em que [eles executam] uma pessoa que voluntariamente se coloca para depor, alguém que publicamente se colocava como contra a luta armada”, a opinião pública se volta contra o regime.
Ao revisitar o momento, o jornalista Gabriel Priolli comenta que entre os próprios militares pairou a ideia de que “mataram o cara errado” – ventilou-se a versão de que a morte do jornalista havia sido um “acidente de trabalho” provocado por excesso na “dosagem” da tortura, segundo conta ele.
Priolli era aluno de Herzog na USP e trabalhava em sua equipe na Cultura. Ele situa a comoção popular lembrando que o jornalista assassinado pelo regime “era diretor da emissora pública criada pela elite paulista”. “Foi um ponto de virada”, define, falando sobre a ditadura que, em seu entendimento, teve a imagem abalada de forma incontornável pela morte de Herzog.
Lideranças religiosas contribuíram para que a memória de Herzog se convertesse em luta pela democracia. No dia 31 de outubro, um ato interreligioso reuniu 8 mil pessoas na Praça da Sé, centro de São Paulo. À frente da missa estavam o cardeal arcebispo Paulo Evaristo Arns (1921-2016), o rabino Sobel e o reverendo Jaime Wright (1927-1999) – respectivamente, lideranças da Igreja Católica, da comunidade judaica e da Igreja Presbiteriana.
O evento religioso foi a primeira grande manifestação de protesto contra o regime desde o Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968. Autora do livro Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, a historiadora Beatriz Kushnir, professora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), define o encontro ecumênico da Sé como um “momento disruptivo”, “de protesto e de resistência”.
Mas ela relativiza o peso histórico disto para o fim da ditadura. “[Esta] é uma leitura a posteriori, […] sem analisar com exatidão o quão conservadora e autoritária é a sociedade brasileira”, comenta.
“Foi um marco historiográfico importante mas não necessariamente faz a quebra de paradigma da ditadura”, complementa a historiadora, lembrando que a comoção com a morte de Herzog se somou a um “caldo que estava sendo fervido”, construindo a agonia do regime de exceção.
Entraria para a história ainda a questão do sepultamento de Herzog. Pela tradição judaica, suicidas são enterrados em uma ala segregada no cemitério. No entanto, em um gesto entendido como afronta à versão então divulgada pelos militares, determinou-se uma localização comum à sepultura do jornalista, no Cemitério Israelita do Butantã.
Em 1976, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) escreveu Ponto de Partida, um espetáculo teatral focado em mostrar a dor da sociedade que fora despertada com o assassinato de Vlado Herzog.
Houve leituras dramáticas do texto neste mês, no Centro Cultural MariAntonia, em São Paulo, por conta dos 50 anos do episódio. “Acho importante este momento de relembrá-lo para que o fato acontecido não venha a se repetir novamente. É memória da história”, salienta a diretora do espetáculo, a atriz Mirtes Mesquita, pesquisadora-colaboradora da USP.
Quem foi
Vlado Herzog, que no Brasil adotou o nome de Vladimir, nasceu no então Reino da Iugoslávia em 1937 – sua cidade-natal hoje faz parte da Croácia. Filho de um casal de judeus, emigrou durante a Segunda Guerra Mundial para escapar da perseguição nazista na Europa.
Em São Paulo, formou-se em Filosofia na USP e construiu sólida carreira jornalística. Trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo e na BBC antes de assumir o cargo de diretor na TV Cultura.
Depois de décadas de luta, em março de 2013 a família Herzog recebeu uma nova versão do atestado de óbito substituindo sua causa mortis. Desde então, oficialmente, Vlado Herzog morreu em consequência de “lesões e maus tratos”.