Mudança na política educacional começou em 2004, em Sobral, que irradiou estratégia para outras cidades, e depois, para o estado. Governo federal tenta replicar experiência.O Ceará é o estado brasileiro com a maior proporção de crianças alfabetizadas na idade certa: 85,3% dos alunos matriculados no 2º ano do ensino fundamental sabem ler e escrever com autonomia em 2025, segundo o Indicador Criança Alfabetizada (ICA) do Ministério da Educação, divulgado em julho. A taxa supera a média nacional, que foi de 59,2%. A meta geral era de 60%.

Para 2030, o objetivo do MEC é chegar aos 80%, taxa que só foi alcançada, desde já, pelas escolas cearenses. Por isso, as estratégias adotadas pelo Ceará inspiraram a política de alfabetização em regime de colaboração em 25 estados. Ainda que o ensino fundamental seja de responsabilidade dos municípios, os governos estaduais fornecem apoio técnico e financeiro às prefeituras para que melhorem os indicadores.

“No Ceará, a secretaria estadual e os municípios aprenderam a alfabetizar. O Brasil ainda está em um estágio anterior”, avalia o gerente de políticas educacionais da organização Todos Pela Educação, Ivan Gontijo. “Essa política já vem sendo implementada desde 2007, são quase 20 anos de expertise acumulada. Isso explica o sucesso em relação aos outros estados, e, ainda que já tenha alcançado patamares altos, consegue evoluir”.

Avanço gradual

Os bons resultados da alfabetização do Ceará em 2025 contrastam com a realidade dos municípios cearense de 20 anos atrás. Diante do baixo desempenho, a cidade de Sobral foi pioneira na transformação da política educacional.

Durante o mandato do então prefeito, Cid Gomes, hoje senador, a secretaria de Educação definiu metas para o letramento na idade certa (até 7 anos), além do aumento dos investimentos no setor, que levaram o município ao topo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) entre as cidades com mais de 70 mil habitantes nos anos 2000.

Em 2004, todo o estado acompanhou esse processo. Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) daquele ano apontavam que 55% das crianças cearenses apresentavam desempenho ruim em leitura e escrita ao final da 4ª série.

Por conta dessa conjuntura, deputados da Assembleia Legislativa instituíram o Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar. Em seguida, a atuação dos parlamentares resultou na criação do Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC) pelo governo estadual.

A partir de 2015, outros estados passaram a reproduzir essa estratégia, como Pernambuco, Espírito Santo e Piauí. Em 2022, com a nomeação do ex-governador do Ceará Camilo Santana para o Ministério da Educação, parte da equipe da secretaria de Educação do estado foi para o governo federal, entre eles a ex-secretária-executiva da pasta, Izolda Cela, que implementou o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.

Estratégia e incentivo

Dessa forma, a experiencia de Sobral foi ampliada e adotada nas demais cidades. O pilar da estratégia que fortaleceu o ensino fundamental foi a cooperação entre o estado e os municípios. As avaliações para monitorar a evolução da aprendizagem e a preparação do material didático são centralizadas pelo estado e distribuídas às prefeituras.

Inspirada no exemplo do Ceará, uma emenda constitucional de 2020 criou o ICMS Educacional. Essa medida estabelece que uma parcela do imposto estadual deve ser destinada aos municípios conforme indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem.

A ação serve como incentivo aos prefeitos, já que o dinheiro recebido por esse mecanismo não é vinculado, ou seja, os gestores podem definir livremente como o recurso será usado.

Alunos, pais e professores

Mais uma medida foi o foco na capacitação de professores em práticas de alfabetização baseadas em evidências. Deusiran Nascimento é diretora da escola de ensino fundamental Joaquim José Monteiro, no município de Cruz (CE), que obteve a maior nota do país no Ideb em 2021 (9,1). Ela explica que, a cada bimestre, os professores passam por uma formação continuada. “Alguns professores são fragilizados na prática de sala de aula, e temos que atualizá-los”.

Quanto aos alunos, Nascimento diz que o acompanhamento da aprendizagem é feito por etapas, desde o primeiro ano, quando os alunos já são leitores de frases curtas. “Nas turmas de alfabetização criamos projetos de leitura”, afirma. Além disso, todos os meses, os alunos são avaliados para que os professores identifiquem falhas no processo de letramento. “Com isso, desenvolvemos atividades personalizadas dependendo do nível de escrita e leitura.”

Além disso, os professores e coordenadores mantem contato direto com a família dos alunos. “Tem grupos das famílias no WhatsApp. Como aqui é um vilarejo, vamos às casas, todo mundo se conhece. Montamos cantinhos da leitura em casa com os pais, para que acompanhem a evolução das crianças”, explica a educadora.

Para verificar a eficácia desse trabalho, o governo estadual faz uma avaliação periódica do PAIC, por meio do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (SpAece). Os testes traçam um diagnóstico da educação no estado e permite que sejam planejadas intervenções onde há defasagem de ensino.

Quanto falta material, é a própria equipe da escola que tem de se virar para arrecadar material. “Fizemos campanhas para arrecadar livros, às vezes imprimimos, compramos material. Este ano entrou um recurso para a educação infantil que antes não tinha. Até então, a última vez que veio livro do governo federal foi em 2019. Agora que voltou a vir”.

Resultados positivos

Nascimento diz que antes do fim do ano letivo já vê resultado do esforço. “Hoje aqui na nossa escola, estamos em agosto, a maioria da turma já é de leitores de texto. “Já tivemos casos de alunos do segundo ano vindos de São Paulo que não sabia o alfabeto, nem conhecia as letras nem fazer o nome, mas aqui foi alfabetizado”.

O desempenho na alfabetização do Ceará foi reconhecido pelo governo federal nesta segunda-feira (11/08), durante a entrega do Premio MEC da Educação Brasileira, na categoria de melhores resultados para essa prática. O prêmio de R$ 500 mil tem de ser aplicado na infraestrutura das escolas e valoriza.

Limitações

Mesmo com a mobilização de toda essa política, ainda há limitações. Isso porque a estratégia das escolas no Ceará foca na alfabetização no âmbito institucional, ou seja, promove a aprendizagem para quem está matriculado em escolas. Quem está fora das instituições de ensino fica à margem da política, como é o caso dos analfabetos funcionais.

De acordo com dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 93% dos brasileiros com 15 anos ou mais são alfabetizados no Brasil e 7% são analfabetos. No entanto, apesar da alfabetização se aproximar da universalização, cerca de 29% desses adultos são analfabetos funcionais.

O nível de leitura e escrita desse grupo é considerado rudimentar, segundo a ONG Analfabetismo Funcional, o que significa que são capazes de compreender informações explícitas e números com os quais estão familiarizados, mas não conseguem decodificar textos mais longos ou operações matemáticas mais complexas.

“O que a gente precisa é fechar essa torneira, que é garantir que as pessoas sejam alfabetizadas na idade certa. E ser alfabetizado na idade certa, no Brasil, é no início do fundamental”, argumenta Gontijo. “Se a pessoa não se alfabetizar na idade certa, ela vai tendo muita dificuldade ao longo da sua trajetória escolar e não só na disciplina de língua portuguesa, não consegue resolver uma questão de geografia, ou resolver um problema de matemática. Se a gente consegue garantir uma base muito bem feita, a trajetória dessas crianças vai ser muito mais fácil”.