Alguns países estão usando aviões para lançar mantimentos no enclave palestino. Mas ONGs criticam medida como “simbólica e “ineficaz” e dizem que só o reestabelecimento de rotas terrestres conseguirá conter a fome.A extensão da fome que os palestinos enfrentam em Gaza não tem paralelo neste século, alertou Ross Smith, diretor de resposta a emergências do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU. “Lembra catástrofes anteriores na Etiópia ou em Biafra, no século passado”, disse. “Isso não é um aviso, mas um chamado à ação.”

O “pior cenário da fome” está ocorrendo na Faixa de Gaza, afirmou também o IPC Hunger Monitor, uma iniciativa que monitora a situação alimentar em Gaza em cooperação com agências da ONU.

O relatório afirma que o limiar para a fome já foi ultrapassado em todo o território palestino, e que o limiar para a desnutrição aguda, que pode causar complicações graves e levar à morte, foi superado na Cidade de Gaza.

Grande parte dos mais de dois milhões de habitantes da Faixa de Gaza vive agora em condições precárias em campos de refugiados, porque o Exército israelense declarou grande parte da área de 365 quilômetros quadrados do território como zona de exclusão militar.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou recentemente que “não há fome na Faixa de Gaza”. Desde o início da guerra, Israel negou quase completamente o acesso de jornalistas à área, tornando impossível avaliar a situação de forma independente.

“Cinismo”, “política simbólica” e “desperdício de dinheiro”

Nos últimos dias, alguns atores internacionais vêm buscando formas de tentar aliviar a fome aguda: no domingo, aeronaves militares da Jordânia e dos Emirados Árabes Unidos lançaram 25 toneladas de suprimentos de ajuda sobre o território palestino.

A Alemanha e a França também anunciaram suas próprias missões de lançamento aéreo. “Esta ação pode ser apenas uma pequena contribuição humanitária, mas envia um sinal importante: estamos lá, estamos na região, ajudando”, disse o chanceler federal alemão, Friedrich Merz.

Mas as organizações humanitárias estão chocadas. “Lançar ajuda humanitária do ar é uma iniciativa inútil, que cheira a cinismo”, disse Jean Guy Vataux, coordenador de emergências para a região da organização Médicos Sem Fronteiras.

O think tank Centre for Humanitarian Action (CHA), sediado em Berlim, chamou isso de “a ponte aérea mais sem sentido de todos os tempos” e “política simbólica e desperdício de dinheiro”. Segundo seu diretor, Ralf Südhoff, os transportes aéreos são até 35 vezes mais caros do que os comboios terrestres.

Lançamentos aéreos não chegam aos mais necessitados

Marvin Fürderer, especialista em ajuda de emergência da organização civl alemã Welthungerhilfe, fala de “lançamentos simbólicos e ineficazes”. À DW, ele descreve um problema fundamental: “A carga é lançada sem coordenação, sem uma zona de lançamento designada, sem estruturas de segurança em um ambiente de alto risco.”

A ajuda muitas vezes não chega às pessoas que mais precisam, “mas sim àquelas que ainda têm mobilidade suficiente para atravessar os escombros e as ruas lotadas até a zona de lançamento e lutar pela carga no local”, diz Fürderer.

Quase todos os dias, são relatadas mortes em torno dos poucos centros de distribuição da controversa Fundação Humanitária de Gaza (GHF). Baseada nos Estados Unidos, a organização está encarregada de distribuir ajuda na Faixa de Gaza desde maio, com o aval do presidente Donald Trump, depois que Israel proibiu que a agência de ajuda humanitária aos palestinos da ONU, a UNRWA, operasse de forma independente no enclave.

No entanto, a GHF não tem conseguido garantir a segurança nos centros de distribuição. Além disso, de acordo com a ONU, os militares israelenses disparam repetidamente contra pessoas que esperam na fila. De 27 de maio e 21 de julho, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, mais de mil palestinos foram mortos por soldados israelenses enquanto tentavam obter suprimentos de ajuda humanitária.

Só via terrestre conseguiria abastecer território

As organizações humanitárias estão pedindo a livre passagem dos suprimentos de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza e o retorno ao antigo sistema: em vez de serem entregues em alguns pontos específicos, os alimentos eram distribuídos de forma descentralizada em cerca de 600 pontos de distribuição.

Riad Othman, especialista em Oriente Médio da organização Medico International, disse em uma coletiva de imprensa em Berlim: “Antes de 7 de outubro de 2023, 500 a 600 caminhões por dia abasteciam a população e a economia de Gaza. Hoje, 600 caminhões por dia não seriam suficientes para atender à demanda, porque não apenas a infraestrutura essencial e o sistema de saúde, mas também a agricultura foram sistematicamente destruídos em Gaza.”

Um caminhão normalmente leva cerca de 20 toneladas de suprimentos de emergência, que muitas vezes incluem, além de alimentos, produtos médicos e água potável.

Em 7 de outubro, o Hamas matou mais de 1.200 pessoas em Israel em um ataque terrorista coordenado e sequestrou outras 250 como reféns na Faixa de Gaza. Israel declarou então seu objetivo militar de destruir o Hamas, mas também aceitou dezenas de milhares de vítimas civis e a ampla destruição da Faixa de Gaza. A autoridade de saúde de Gaza relata mais de 60 mil mortes, incluindo pelo menos 147 por inanição.

Após o término do cessar-fogo em março, Israel bloqueou todas as entregas por mais de 80 dias. Há alguns dias, o Exército israelense vem fazendo pausas diárias nos combates na Faixa de Gaza e permitindo mais entregas de ajuda por terra. O ministro da Segurança de Netanyahu, Itamar Ben-Gvir, de um partido de ultradireita, criticou a medida como “suporte de vida para o inimigo”.

Julia Duchrow, secretária-geral da Anistia Internacional na Alemanha, disse: “Há ampla evidência de que Israel está usando a fome como arma de guerra”. Ela pediu ao governo alemão que pare de fornecer armas a Israel e aumente a pressão diplomática sobre o governo de Netanyahu.

“Comboios podem partir dentro de horas”

O governo israelense negou o acesso de muitas organizações não governamentais internacionais à Faixa de Gaza; mesmo a Welthungerhilfe, atualmente, só pode fornecer ajuda por meio de organizações parceiras locais.

Marvin Fürderer defende um cessar-fogo permanente e a abertura das passagens na fronteira para o fornecimento de ajuda humanitária. Assim, a Welthungerhilfe poderia levar mercadorias da Jordânia para a Faixa de Gaza em poucas horas, disse. “Esses comboios poderiam partir em poucas horas, assim que as condições políticas no local permitissem.”

Para os lançamentos aéreos já planejados, no entanto, a logística teria que ser repensada, o que acarretaria novos custos. “É bastante interessante que isso esteja sendo considerado agora, em um contexto em que o governo alemão quer cortar o orçamento para ajuda humanitária em 53%. Em tal situação, é difícil gastar milhões em lançamentos aéreos simbólicos e ineficazes”, disse Fürderer.

A Força Aérea Alemã já tem experiência com lançamentos aéreos em Gaza. Em 2024, aviões militares A400M realizaram missões de lançamento aéreo durante dez semanas. No total, foram lançadas 315 toneladas de suprimentos de emergência. Com base em uma necessidade humanitária mínima de 500 caminhões por dia, isso cobriria as necessidades da população faminta na Faixa de Gaza por cerca de oito horas.

Contribuiu: Jens Thurau