São Paulo saiu derrotado da Revolução de 1932 mas conflito armado se tornou mito fundador do orgulho paulista e da identidade estadual moderna.Feriado em São Paulo, o dia 9 de julho celebra o início de uma guerra civil cuja derrota se transformou, paradoxalmente, no símbolo máximo do orgulho paulista. De eventos como desfiles cívicos, a marcos como o monumental Obelisco do Ibirapuera – mausoléu que abriga os restos mortais de combatentes mortos durante o conflito – a chamada Revolução Constitucionalista de 1932 é entendida pelos paulistas como um marco do suposto caráter de vanguarda que o estado teria.

Para historiadores contemporâneos, a data cívica é uma prova de como até mesmo fatos que implicam derrota podem ser ressignificados, moldando identidades e criando uma narrativa de pertencimento.

“Foi uma forma de compensação psicológica e política. Construído após a derrota, este discurso pretendia abocanhar os fatos novos, decorrentes do conflito, como convocação de eleições para a Assembleia Constituinte e a disposição de [Getúlio] Vargas em ouvir os paulistas”, diz o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “As relações de Vargas com os cafeicultores de São Paulo sempre foram de desconfiança mútua. Nas rodas de conversa das lideranças paulistas foi voz corrente a observação: ‘ele não é um dos nossos’. Esta referência a Vargas sobreviveu ao tempo.”

Pesquisador no Instituto Presbiteriano Mackenzie, o historiador Victor Missiato ressalta que essa construção do mito fundador paulista também se ancorou em outro elemento que já estava presente no imaginário: o desenvolvimento econômico do estado. “Havia uma conjuntura de crescimento em relação ao Brasil”, afirma.

O movimento paulista de 1932 costuma ser apresentada nos livros didáticos e nos discursos oficiais como um levante em nome da democracia. Em tese, São Paulo se insurgiu contra o governo provisório de Getúlio Vargas (1882-1954), instaurado após a Revolução de 1930, para exigir a convocação de uma nova Constituição. Na prática, os interesses eram mais complexos.

Mito cultivado

Com o fim da chamada “política do café com leite” que havia dominado a primeira fase republicana brasileira, a elite paulista – majoritariamente formada pela oligarquia dos fazendeiros de café – estava incomodada com a perda do protagonismo. Nesse contexto, a bandeira constitucionalista insuflou e mobilizou setores urbanos e conferiu legitimidade popular ao conflito.

Foram três meses de uma verdadeira guerra civil, que terminou em outubro com a rendição das tropas paulistas. Oficialmente, a historiografia registra que teriam sido 934 mortos em combate – mas algumas pesquisas apontam para mais de 2 mil baixas.

Mesmo derrotado militarmente, o movimento foi rapidamente ressignificado. O esforço de combate paulista, bem como a pujante mobilização que acabou sendo organizada para o conflito, acabou sendo narrada como símbolo de bravura e coragem. Além disso, o discurso oficial era de que São Paulo estava lutando pela democracia. Por isso, pesquisadores contemporâneos entendem o legado do movimento mais como o grande orgulho paulista – veem como o mito fundador da identidade paulista moderna.

Esse mito foi cuidadosamente cultivado. Inaugurado em 1955, o Obelisco do Ibirapuera, oficialmente batizado de Mausoléu aos Heróis de 32, é apenas a face mais saliente de um esforço contínuo de memória. Em todo o estado, existem ruas, escolas e praças com nomes de combatentes da revolução e avenidas batizadas como 9 de julho.

Nas escolas paulistas, é comum que o episódio seja ensinado de forma heroica. E muito se fala sobre a sigla MMDC, em alusão aos jovens Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, que morreram em protestos ocorridos em 23 de maio de 1932, antecedente direto do conflito. Os quatro acabaram se tornando mártires da luta armada.

O conflito

Martinez conta que em 1932, “a recomposição do grupo oligárquico amealhou o eleitorado urbano de classe média e operária, organizando a segunda conspiração, agora sob o lema da unidade política” e não mais “a rivalidade intraclasse aberta em 1926 e revigorada em 1930”. “O 9 de julho nasceu desta celebração da elite econômica e social de São Paulo, reafirmando a sua unidade de interesses contra eventuais adversários, à esquerda ou não”, aponta ele.

“Ninguém sabe o significado do 9 de julho aqui em São Paulo, como não se sabe o 7 de setembro, nem o 21 de abril ou o 15 de novembro”, lamenta o historiador Marco Antonio Villa, professor na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor do livro A Revolução de 1932 – Constituição e Cidadania. “Há uma absurda ignorância da população sobre o significado de feriados históricos, infelizmente.”

Martinez argumenta que o “levante paulista” era “apenas uma tentativa de reocupar o cenário político nacional” e “não obteve êxito”. E isso explica o fato de outros estados não se importarem muito com a história do conflito. “Houve abandono, intimidação e silêncio de apoiadores e de lideranças em outros estados”, comenta ele.

A narrativa da Revolução de 1932 alimentou, ao longo das décadas, um senso de excepcionalismo paulista. A maneira como ela foi significada pela historiografia paulista sedimentou uma ideia, um tanto anacrônica, de que São Paulo seria a locomotiva do Brasil – a frase latina que está no brasão da cidade de São Paulo diz “não sou conduzido, conduzo”. Essa noção ainda aparece muito, sobretudo em discursos políticos e em momentos eleitorais.

E também aparece em campanhas cívicas e até mesmo em alguns espectros mais radicais. Especialistas veem uma certa convergência desse discurso com o bolsonarismo paulista, apropriando-se da ideia do “nós contra eles”, principalmente antagonizando o estado com o nordeste brasileiro – que foi a região que acabou selando a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro para o Partido dos Trabalhadores (PT) nas últimas eleições presidenciais.

Significados

O caso da Revolução Constitucionalista também levanta questões mais amplas sobre a relação entre memória histórica e identidade nacional. O fato de um estado celebrar, com tanto fervor, uma guerra civil perdida pode soar contraditório – mas revela como sociedades constroem sentidos a partir de seus traumas.

Nesse sentido, a derrota de 1932 foi reelaborada como vitória moral. A lógica não é exclusiva dos paulistas. Os sulistas americanos, derrotados na Guerra Civil que o país viveu no século 19, também se apropriam de ícones que rememoram o conflito de forma orgulhosa.

“Em histórias nacionais é muito comum as disputas pela memória. São Paulo busca contar a história do Brasil a partir do seu olhar. Isso está presente também no sentido de resgatar o espírito bandeirante, como desbravador, inovador em busca de novos tesouros e valores”, analisa Missiato. “Há uma história que coloca o movimento como revolucionário e uma visão mais progressista que situa o movimento como algo que dialogava com as elites do atraso.”

Villa argumenta que o significado de real importância está no desejo do levante de que fosse convocada uma Assembleia Nacional Constituinte. “Foi um momento importantíssimo das lutas democráticas do país, um movimento que apontava para uma questão nunca vista em qualquer outra rebelião brasileira”, diz ele, sobre essa pauta constituinte.

Para ele, a narrativa de que o conflito buscava restabelecer os privilégios paulistas na estrutura do poder anterior aos anos 1930 é uma narrativa “do governo provisório” da época.

A data chegou a ser feriado antes da ditadura militar de 1964. “Então tirou-se o 9 de julho porque a celebração evocava uma questão de liberdade, constituição e respeito ao ordenamento legal, o que não combinava com o regime militar”, frisa Villa. O feriado voltou ao calendário estadual paulista em 1997, instituído por lei.

Embora o 9 de julho seja celebrado oficialmente, há quem conteste seu significado. Em tempos de debates acalorados sobre os usos da história – como os que cercam o golpe de 1964 ou os eventos de 8 de janeiro de 2023 –, a celebração de uma guerra civil que dividiu o país é vista por alguns como anacrônica, até mesmo perigosa.

Para Martinez, trata-se de uma perspectiva ultrapassada. “É uma mitologia política e que perde, diariamente, o poder de sedução, sob efeito do tempo decorrido e das transformações sociais”, diz. “A economia nacional, hoje, enfrenta a desindustrialização e o abandono de políticas públicas de educação, ciência, cultura e saúde. Estas foram traços distintivos, no início do século 20, e mesmo do programa de 1930, e que deram ao estado de São Paulo e à sua capital, em particular, uma aura de promoção do bem-estar econômico e social. Uma ilusão que sobrevive no imaginário e na retórica de saudosistas de diferentes matizes políticos e ideológicos, até o limite da ‘superioridade racial’. É mais uma panaceia fóssil na discriminação, na opressão e na violência estatal contra a sociedade.”

Missiato explica que nas décadas seguintes ao conflito, houve a criação de uma historiografia paulista incumbida de consolidar uma versão história “hagiográfica e heroica” do acontecimento. “Era no sentido de criar heróis e memoriais, sem muitas contradições”, conta. “Por outro lado, produções historiográficas de fora de São Paulo buscam ver uma outra perspectiva, inclusive chamando não de revolução, mas de revolta ou de conflito regional.”

Ainda assim, para muitos paulistas, o 9 de julho continua sendo um dia de exaltação. Uma data em que a bravura supera a derrota, e o mito se sobrepõe à história.