A garantia de segurança de crianças e adolescentes no ambiente virtual passa ainda pelo diálogo sobre como funcionam as plataformas e pela reivindicação de aplicativos mais éticos.O Brasil é um dos países em que crianças e adolescentes mais passam tempo online. Redes sociais, jogos e outros aplicativos fazem parte da rotina desde muito cedo, e junto com as oportunidades de aprendizado e diversão vêm riscos sérios para a saúde mental, a privacidade e até a segurança física dos jovens.

Pais e responsáveis, no entanto, relatam que se sentem sobrecarregados: não dominam as ferramentas de controle, têm dificuldade em acompanhar as novidades digitais e muitas vezes acreditam — de forma equivocada — que seus filhos já nasceram sabendo usar a internet de forma segura.

Ao mesmo tempo, cresce a pressão sobre as empresas de tecnologia para que assumam sua parcela de responsabilidade na proteção de crianças e adolescentes, o que foi reforçado com a aprovação no Congresso do projeto de lei apelidado de ECA Digital, em referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Alçado à pauta de votação no calor do debate sobre “adultização” de crianças na internet, o texto exige mais mecanismos de proteção, denúncia e prestação de contas por parte das big techs. A lei passará a valer um ano depois de ser sancionada presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O tempo é necessário para as empresas se atualizarem.

“O que a gente tinha até então [antes da aprovação da lei] era uma completa assimetria de poder, ficando quase que exclusivamente no colo das famílias tomar iniciativas e fazer, de fato, atividades para garantir essa proteção”, afirma Rodrigo Nejm, especialista em educação digital do Instituto Alana, organização voltada aos direitos das crianças.

O projeto não exime as famílias de garantir a segurança de seus filhos nos meios digitais, tarefa que deve ser compartilhada entre responsáveis, o governo, empresas e a sociedade.

Para o professor de psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Moura Cardoso, é preciso ficar atento para que o lobby das plataformas não empurre para os pais e demais responsáveis, mais uma vez, uma parte desproporcional dessa missão.

“Ainda há muita responsabilidade em cima das famílias para que elas façam monitoramento. Primeiro: você está exigindo que elas tenham uma educação de mídia avançada, o que não acontece na maioria dos casos. Segundo: as próprias crianças conseguem burlar uma série de situações e travas para conteúdos impróprios”, afirma o pesquisador.

Uma nova “introdução alimentar”

Assim como um bebê que acabou de ter o primeiro dente não deve comer bacon ou batata frita, uma criança não deve ficar à deriva diante de uma tela. “Forço essa metáfora para dizer que essa introdução à vida digital da criança precisa também de cuidado, de alguns filtros”, explica Nejm.

E a sociedade já está bem consciente dos perigos de uma “dieta digital” errada. Uma pesquisa do Instituto Alana conduzida pelo Datafolha em julho de 2024 mostra que 93% dos entrevistados concordavam que as crianças e adolescentes estão ficando viciados em redes sociais. A maioria das pessoas acreditava que não é uma boa ideia ter um perfil de rede social antes dos 15 anos.

Mesmo assim, 93% dos adolescentes entre 13 e 14 anos no Brasil têm redes sociais, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil de 2024. Entre crianças de 11 a 12 anos, esse percentual é de 70%.

A posse de um smartphone não é recomendada para menores de 12 anos – e quanto mais tarde isso acontecer, melhor, como indica o guia de telas do governo federal.

O Movimento Desconecta – iniciativa de pais pela redução e controle do acesso a smartphones – propõe que se adie o primeiro smartphone até os 14 anos, e acesso a redes sociais até os 16 anos.

Entre as questões centrais, está o fato de que crianças e adolescentes – mesmo os usuários intensos de internet – não têm entendimentos básicos sobre os mecanismos das plataformas, nem capacidade de se defenderem sozinhos de violências e conteúdos inadequados para a sua idade.

Questões de saúde mental avançam

A transição de uma infância baseada em brincadeiras livres para uma dominada por smartphones e redes sociais causou um declínio na saúde mental dos jovens a partir da década de 2010. Essa “epidemia de doenças mentais” é detalhada pelo psicólogo social americano Jonathan Haidt em seu livro A Geração Ansiosa.

Essa mudança tem relação direta com o aumento de problemas como ansiedade, depressão, dificuldades de atenção, problemas de visão e incentivo ao consumo – sem falar em sedentarismo.

Isso porque as redes sociais estimulam a comportamentos como comparação social, adultização, uso compulsivo, consumo de produtos ilegais e impróprios para crianças, incluindo pornografia para crianças.

A SaferNet Brasil, associação com foco na promoção e defesa dos direitos humanos na internet, tem acompanhado o avanço de questões sobre saúde mental no seu canal de ajuda, uma linha para escuta e acolhimento sobretudo de crianças e adolescentes criada em 2007.

Segundo Guilherme Alves, gerente de projetos da entidade, os chamados associados ao tema cresceram muito nos últimos anos – um avanço de 80% só de 2023 a 2024.

“Questões de conteúdo violento na internet, coisas do tipo, sempre foram muito preponderantes, em especial o cyberbullying. Mas o que a gente tem visto, em especial depois da pandemia, é que as questões mais difusas relacionadas a bem-estar e a saúde emocional têm ganhado mais importância.”

O canal de denúncias da SaferNet Brasil registrou quase 50 mil denúncias anônimas de abuso sexual infantil apenas nos primeiros sete meses de 2025, mais que o dobro que o ano passado – com um pico de procura após o vídeo do influenciador Felca.

O principal tópico tanto nos canais de ajuda como de denúncia da Safernet Brasil continua sendo, desde a sua criação, a exposição de imagens íntimas – agora com a novidade do uso de inteligência artificial. “A gente tem acompanhado, por exemplo, como dentro da discussão de denúncias de abuso por ação sexual, a manipulação de imagem com IA tem ganhado cada vez mais importância”, afirma Alves.

Como fazer a mediação dar certo?

Um dos indicadores mais usados para regular a vida digital de crianças e adolescentes é o tempo de tela, que não deve superar as duas horas diárias para crianças acima de cinco anos – um cabo de guerra eterno entre pais e plataformas, que baseiam seus modelos de negócios justamente no quanto podem prender os usuários.

No entanto, dosar a permanência digital é apenas um dos passos para o bem-estar de crianças e adolescentes. Os pais devem estar por dentro do que seus filhos acessam e dispõem para isso de inúmeras ferramentas de controle, filtragem de conteúdo, bloqueio de apps e monitoramento de aplicativos.

Mesmo assim, a mediação parental continua difícil para muitos. Apenas 38% dos responsáveis sabem como bloquear conteúdos inadequados, e 40% conseguem limitar o tempo de tela, segundo dados da pesquisa encomendada pelo Alana.

Para Alves, da Safernet Brasil, não há ferramenta melhor de mediação do que o diálogo. “Talvez os filhos possam ensinar várias coisas para os seus pais… E os pais possam ensinar para os seus filhos outras coisas que não necessariamente têm a ver com esse uso instrumental da tecnologia, mas sobre cuidados, valores, comportamento, ética, empatia.”

Jovens são o “produto” mais cobiçado

Existe uma máxima que se aplica bem às redes sociais que é a de que se você não está pagando por um produto, você é o produto. Sarah Wynn-Williams, ex-diretora do Facebook (agora Meta) que publicou um livro denunciando práticas antiéticas na plataforma, afirmou que a empresa sabia quando adolescentes estavam fragilizados e usava isso para direcionar publicidade. Outros ex-funcionários da Meta fizeram denúncias semelhantes.

Em suas memórias, a ex-executiva afirma que a plataforma tem a capacidade de segmentar seus usuários com base em estados emocionais, origem racial e étnica, e chegou a rastrear quando garotas apagavam selfies – supostamente um momento em que estão mais inseguras com a sua aparência – para que uma empresa pudesse exibir anúncio de beleza para elas logo em seguida.

A Meta negou as alegações, chamando-as de “distantes da realidade e repletas de falsas alegações”.

Esse tratamento de dados pessoais para prever comportamentos, interesses e vulnerabilidades, transformando informações íntimas em moeda para anunciantes, se chama perfilamento. Um dos maiores avanços propostos pelo ECA Digital foi justamente a proibição dessa prática voltada para crianças.

O fato é que a manipulação de dados é uma camada das redes sociais que passa despercebida pelos mais novos. Metade dos adolescentes no Brasil que usam internet não têm noção do que são algoritmos, como funcionam os anúncios nos buscadores e direcionamento de conteúdo, segundo pesquisa do Alana.

Isso significa, por exemplo, que eles acreditam que o que eles veem na rede social é o último post que os colegas publicaram, ou que o primeiro resultado de um site de busca é o mais relevante.

Nada é por acaso, muito menos o design

Assim como se projeta um prédio de uma escola considerando a altura da pia, vaso sanitário, mesas e cadeiras ideal para crianças, o ambiente digital também deveria ser pensado para dar mais segurança aos mais novos.

Botões chamativos, rolagem infinita e notificações constantes são alguns dos recursos visuais das plataformas para prenderem a atenção – enquanto configurações de segurança ficam escondidas.

E por qual motivo é muito mais fácil criar uma conta do que configurar privacidade ou excluir perfis? “Muitas vezes é uma escolha de design, é uma escolha que a gente chama de um design que dificulta”, explica Nejm.

Com o ECA Digital, a proposta é que empresas passem a investir em ferramentas de controle e segurança tão acessíveis quanto seus mecanismos de venda.

“É também responsabilidade das empresas que oferecem produtos e serviços digitais criar mecanismos dentro das suas plataformas que efetivamente facilitem essa parte de atuação que é de responsabilidade das famílias”, afirma Nejm.

O projeto de lei determina que as plataformas tomem medidas “desde a concepção e ao longo da operação” para “prevenir e mitigar riscos de acesso, exposição, recomendação ou facilitação de contato” com conteúdos, produtos ou práticas não aconselháveis.

“O projeto de lei, inclusive, pode fomentar que a gente passe a ter cada vez mais outros tipos de serviços e produtos digitais quando a gente pensa nas crianças e adolescentes. É importante olhar nessa perspectiva de que o texto não é apenas restritor, de colocar camadas de proteção, mas é também uma forma de estimular outros desenhos possíveis para as tecnologias digitais”, defende Nejm.

Não se aprende rolando vídeos infinitamente

O uso frequente de redes sociais e outras aplicações digitais não garante discernimento sobre esses meios, sendo necessária a atuação das escolas nesse letramento. Ao menos desde 2017, escolas públicas e privadas em todo o país devem incluir em seus currículos tópicos que envolvem habilidades e competências de cultura digital e de segurança digital.

Apesar de ser estratégica, a educação para cidadania digital ainda é desigual no país – segundo levantamento da Safernet Brasil, apenas 44% das secretarias de educação estaduais informaram ter disciplinas exclusivas sobre o tema.

“A gente tem que fornecer informações de qualidade até para evitar o pânico”, defende Alves.

Para Nejm, do Instituto Alana, as plataformas também devem se envolver ativamente nesse processo de educação. “Por que não tornar também fácil aprender sobre como funciona um algoritmo? Por que não mostrar para os usuários com mais transparência quais são os critérios de curadoria do conteúdo que aparece no seu feed? Por que não dar opções mais fáceis de usar para as famílias configurarem? Ou para os próprios usuários poderem dizer que tipo de conteúdo ele espera. Por que também não facilitar mecanismos de denúncia e acompanhamento de denúncias de situações que causam sofrimento, por exemplo?”