Poucos temas têm unido gente de espectro intelectual tão distante quanto o fato de que o Brasil polarizado é a pior notícia de nossa história (supostamente pacífica). Uma rotura que nasceu com o comportamento inclassificável de Aécio, o Neves, ao não aceitar o resultado das eleições de 2014. Sobre o qual as altas lideranças tucanas silenciaram, o que levou à decadência de relevância que o partido vive hoje. Atitude, aliás, que foi o caldo inicial do processo político e partidário que derrubou Dilma Rousseff — com argumentos que hoje não equivalem a 1% dos crimes já cometidos no cargo pelo presidente JB. A tese de que um país rachado é nosso problema nuclear une de empresários a lideranças classistas. De pensadores acadêmicos a políticos. Esse racha seria péssimo para o Brasil, como um todo, e para a economia, particularmente. Discordarei. É evidente que a polarização provoca traumas e mesmo violência. Inclusive entre amigos, colegas de trabalhos, familiares. E desconhecidos. Lacrações e cancelamentos criaram laços insuspeitos e sismos igualmente consideráveis. É o preço a pagar.

Historicamente, construiu-se essa bobajada do brasileiro pacífico e cordial. Sobre este termo, o próprio Sérgio Buarque de Holanda, que o trouxe no seminal Raízes do Brasil (1936), não o usava para dizer que somos da paz. Ou bonzinhos e inocentes. Ele trouxe para dizer que não agimos a partir da razão e das experiências. Aqui o empirismo não vem de berço. Atuamos e reagimos pelo coração, de forma impulsiva. Isso estaria na origem, inclusive, da confusão que fazemos entre público e privado. Até porque se cordialidade fosse sinônimo de bondade e fraternidade a gente não estaria entre os países mais desiguais (nono pior do mundo no índice Gini) e dos que mais mata.

No ano passado, em números absolutos morreram de forma violenta por aqui (homicídios) 47.503 pessoas. Isso representa 20,4% de todos os assassinatos do planeta. Mas temos apenas 2,7% da população global. Ninguém no mundo matou mais que a gente. Em números proporcionais (mortes violentas a cada 100 mil habitantes), somos o oitavo. Os dados são do UNdoc, o departamento da ONU de crimes & drogas. Para completa surpresas de absolutamente ninguém, os pretos e pardos são 78% das mortes e metade era jovem: de 12 a 29 anos.

Mas nem isso é novo. Lideramos esses rankings há muito tempo. O problema desse Brasil violento que fingia não ser violento criou a falsa ilusão de harmonia. E ela só nos fez mal. Fingir ser esse paraíso de igualdade racial fez a gente parecer antirracista. Parecer pacífico resultou em não nos indignarmos com matanças contra pobres. Parecer solidário nos faz ignorar como questão de Estado os 33 milhões de nós com fome — fora assistir a excreções, como a do bolsonarista que levou uma marmita para uma mulher em Itapeva, interior paulista, e ao descobrir que ela votaria em Lula dizer que não receberia mais comida da parte dele. A gente se fingiu meritocrático, como se aqui oportunidades iguais fossem regra, mas a verdade é uma elite do funcionalismo que se apropria de mordomias, auxílios, penduricalhos, fora aposentadorias assimétricas com o setor produtivo. Fingir ser da paz nos levou a ver político criarem dinastias, em que o avô entregou para o tio, que passou para o pai e todos alimentados a gerações de rachadinhas.

Ao não explicitarmos e explodirmos nossas diferenças nunca seremos o que sociedades evoluídas conquistaram. Porque nenhum país dito desenvolvido, ou economicamente avançado, construiu suas relações sem os rachas extremos escancarados em algum (ou mais de um) momento de sua história. Foi a posterior necessidade de sentar-se à mesa, juntar os cacos e seguir em frente que moldou o Estado de Direito. O respeito às leis e aos contratos (incluindo os sociais) é mais forte quando a diferença vem à tona. Porque só elas, e o respeito a elas, nos mantêm socialmente confiáveis e decentes.

Por isso, ao escancarar o muro, mostrar que na nossa família ou no trabalho há um cara que desprezamos, faremos nossa lição de casa. E sairemos dela uma nação. A polarização veio para ficar um tempo e levará a ainda mais violência até as eleições — e depois das eleições, que serão questionadas e atacadas, como querem Bolsonaro e boa parte de sua trupe. Se há uma boa notícia nisso tudo ela se resume ao americano Larry Kirshbaum, editor e ex-executivo da Amazon: “Todos temíamos que o sol não fosse nascer no outro dia, mas ele nasceu”. Enquanto não escancararmos nossas diferenças, seremos indiferentes a nossas desigualdades.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.