05/06/2015 - 19:00
Você provavelmente não deve ter ouvido falar de Vera Cordeiro. Não fique constrangido. Poucos ouviram. Clínica-geral, graduada em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a doutora Vera está longe de ser uma pessoa famosa. Ela não ocupa cargos públicos, não aparece nas colunas de fofocas nem atende pacientes estrelados. Não é uma pesquisadora celebrada. Ao contrário, as primeiras décadas de sua carreira poderiam ser descritas como prosaicas. Entre 1978 e 1998, ela trabalhou no Hospital da Lagoa, um hospital público localizado perto do Parque Lage, nas vizinhanças do Jardim Botânico. Muitos de seus pacientes eram crianças. Filhos de moradores de rua, provenientes de famílias desestruturadas, as de menor renda da cidade.
Mesmo quando o tratamento aplicado era bem sucedido, a doutora Vera detestava assinar as altas dos pequenos pacientes. Ela sabia que, assim que passassem pelos portões do prédio projetado por Oscar Niemeyer, as crianças retornariam à situação de miséria e falta de recursos que as tinha levado ao hospital e que, provavelmente, faria com que elas retornassem. A doutora Vera se incomodou com isso. Em 1991, enquanto o País ainda tentava estabilizar sua economia e, ao mesmo tempo, garantir os direitos da Constituição promulgada três anos antes, fundou a Associação Saúde Criança (ASC). Como boa clínica-geral, ela definiu o tratamento a partir de um diagnóstico abrangente. Era necessário tratar a criança doente, mas também era preciso cuidar da família como um todo.
Era preciso olhar não apenas a saúde, mas também a educação, a moradia, a geração de renda e a cidadania. Construído lentamente a partir das experiências, o modelo deu certo. A forma de atuação da ASC vem influenciando médicos, enfermeiros e assistentes sociais, além de nortear o trabalho de voluntários que visam curar e realizar a inclusão social. A fórmula foi replicada em 23 hospitais públicos em seis capitais brasileiras. Desde a fundação, cerca de 40 mil crianças e seus familiares foram atendidos, apesar dos parcos recursos. Uma eficiência que deveria deixar ruborizadas as autoridades a cargo da saúde pública. A ASC vem ganhando reconhecimento no Brasil e no exterior.
A rede de franquias carioca Megamatte, uma das premiadas nesta edição de DINHEIRO, que traz as 50 Empresas do Bem, contribuiu com a ASC, em 2014, e pretende repetir a dose neste ano, capacitando 40 mulheres para poderem trabalhar como cozinheiras, melhorando a renda familiar. A entidade recebeu prêmios internacionais e passou pelo crivo do alemão Deutsche Bank, que fez uma doação neste ano, por meio da Fundação Deutsche Bank Américas. Vera Cordeiro promoveu uma ideia básica que, por enquanto, vem passando desapercebida por aqui. O fato de você provavelmente nunca ter ouvido falar dela mostra que há um problema com a benemerência no Brasil.
A ASC não faz parte das maiores associações de beneficência. Sua fundadora não é uma celebridade, entrevistada com frequência nas reportagens de responsabilidade social – a exceção foi uma aparição em um programa matutino de televisão, em 2013. Aos quase 65 anos, ela ultimamente reduziu seu trabalho como médica e tem se dedicado a representar a ASC. Você provavelmente continuará não ouvindo falar dela. Sem problemas. Para Vera – e para as crianças que passaram e ainda vão passar pela ASC –, a fama não tem a menor importância.