Hoje vamos falar sobre fair play financeiro, expressão de origem inglesa FFP, financial fair play, que na tradução livre significa jogo justo. Essa discussão tem origem na Europa e foi regulamentada pela UEFA (União das Associações Europeias de Futebol) em 2010.

O que diz a regulamentação: “As novas regras da UEFA permitem que os clubes sofram perdas de 60 milhões de euros ao longo de três anos, em comparação com o limite anterior de 30 milhões de euros. Também foi introduzido um limite de gastos com salários, transferências e taxas de empresários de 70% da receita total de um clube até 2025/2026. Além disso, os clubes também são obrigados a liquidar as dívidas vencidas em prazos especificados”.

A UEFA busca que os clubes que participam de suas competições tenham um break even, ou seja, que suas despesas não superem as receitas, buscando assim um equilíbrio entre os clubes e finanças saudáveis aos mesmos.

Trazendo para nossa realidade no futebol brasileiro, hoje não existe nenhum acordo ou lei que controle a vida financeira de um clube. Isso nos parece óbvio uma vez que temos grandes clubes endividados e uma Gestão Corporativa por décadas muito questionável

A soma total das dívidas dos clubes da série A em 2023 superou R$11,7 bilhões, segundo relatório da Consultoria Convocados.

Para deixar nossa discussão ainda mais interessante, temos uma diferença de Receitas absurda, principalmente quando se trata de direitos de transmissão. Por si só já gerando uma dúvida sobre fair play, pois, como queremos ter um jogo justo se, de partida, um clube já tem uma receita desproporcional em relação à maioria?

Tentando exemplificar a afirmação acima, como queremos discutir fair play, se apenas com direitos de transmissão o primeiro lugar tem seis vezes e meia (6,5x) mais recursos que o décimo nono?

Dados abaixo e forma de apuração:
1.Flamengo (R$ 275,2 milhões)
2. Corinthians (R$ 187,2 milhões)
3. Grêmio (R$ 170,1 milhões)
4. Palmeiras (R$ 162,6 milhões)
5. Atlético-MG (R$ 121,2 milhões)
6. Botafogo (R$ 112,5 milhões)
7. São Paulo (R$ 111,7 milhões)
8. Fluminense (R$ 105,7 milhões)
9. Internacional (R$ 105,5 milhões)
10. Cruzeiro (R$ 98,5 milhões)
11. Vasco (R$ 97,6 milhões)
12. Red Bull Bragantino (R$ 85,8 milhões)
13. Fortaleza (R$ 73,6 milhões)
14. Bahia (R$ 72,1 milhões)
15. Cuiabá (R$ 66 milhões)
16. Santos (R$ 64,2 milhões)
17. Coritiba (R$ 49,9 milhões)
18. Goiás (R$ 49,4 milhões)
19. América-MG (R$ 42,8 milhões)
20. Athletico-PR (R$ 41,8 milhões)*

* O Athletico-PR recebe da Globo apenas pelo contrato de TV aberta.

Os valores referentes à TV aberta e à TV fechada são divididos seguindo a fórmula 40/30/30. Ou seja, 40% é repartido de forma igualitária, 30% de acordo com o número de jogos transmitidos, e os outros 30% são a premiação de acordo com a classificação final do campeonato.

Já os valores do PPV obedecem outra lógica: os clubes recebem de acordo com o percentual de participação de suas torcidas. Ou seja, se um time tem 3% das vendas, vai receber 3% dos valores.

Flamengo, Corinthians, Grêmio e Palmeiras, no entanto, têm quantias mínimas garantidas por contrato e, por isso, recebem mais que os rivais. Os demais clubes perderam a garantia do mínimo contratual porque anteciparam dinheiro usando as cotas do Brasileirão como garantia.

Pretendemos ter uma hegemonia de apenas dois, talvez quatro clubes disputando títulos e o restante como meros coadjuvantes?
Vamos deixar essa discussão ainda mais interessante. Recentemente foi aprovado no Brasil a Lei das SAFs, em que investidores podem comprar clubes.

Quando um investidor compra um clube com receitas menores, na maioria dos casos ele está interessado em comprar uma “empresa” (clube), com um valuation baixo, devido à sua baixa receita e endividamento. Como qualquer bom investidor, ele vai querer investir para que tenha uma operação saudável não só financeiramente, mas também em valores de marca e de ativos. Portanto, na maioria das vezes, ele está disposto a investir mais do que a capacidade de receitas daquele clube por dois motivos :

1) Elevar o clube a um outro patamar e com isso gerar um ciclo virtuoso de títulos, brand, sócio torcedor, torcida e com isso naturalmente ter um valuation muito maior do que a aquisição efetuada
2) Quando se compra um clube, você tem dois grandes ativos: o primeiro é sua torcida e o segundo, seus jogadores.

Para ter lucro precisa trazer jogadores que, com boa performance, possam ser vendidos futuramente a valores maiores. Então existe um período de desequilíbrio que o investidor conscientemente aceita ter um nível de endividamento superior.
Se olhássemos jogador como ativo contábil, ele iria compor o PL (Patrimônio Líquido) daquela empresa, e, mesmo que houvesse endividamento, seu ativo estaria compensando.

Atualmente as discussões me parecem muito mais emocionais, do que com a intenção de se discutir fair play de fato. Aliás isso é interessante, pois, enquanto os clubes estavam falidos, ninguém falava desse tema, apenas após a chegada de investidores profissionais.

A discussão é saudável, mas deve ser ampla, envolvendo todos os clubes, os investidores da SAF que vieram ao Brasil, acreditando na confiança jurídica de nosso país, uma comissão do legislativo (deputados e senadores), sociedade civil e a CBF.

Torço para que tenhamos avanços, mas em um país que não respeita o déficit fiscal de nossas contas públicas, com empresas listadas na Bolsa com rombo de mais de R$ 30 bilhões mascarados e clubes que se sentem incomodados por uma mudança de protagonismo, talvez o fair play proposto e aprovado seja apenas para manutenção do status quo.