18/03/2025 - 15:44
Edificações que ignoram normas de engenharia já chegaram a abrigar 11% da população do Grande Recife. Modelo de obra foi banido há 20 anos, mas problemas persistem.A administradora Rosângela Costa, 60 anos, estava passando por dificuldades financeiras e na família quando soube por uma amiga de uma oportunidade única para ter uma casa própria. Sem precisar dar entrada ou parcelas intercaladas, comprou um apartamento no Conjunto Beira-Mar, localizado em Paulista, na Região Metropolitana do Recife.
Costa chegou ao residencial quando ainda havia pouca gente e infraestrutura, em 1984. Mas hoje aquele sonho da casa própria virou pesadelo. Nas palavras do engenheiro civil Luiz Fernando Bernhoeft, do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (Crea-PE), ela havia adquirido uma moradia em um tipo de prédio que “nasceu para cair, mais cedo ou mais tarde”.
O apartamento estava num chamado “prédio-caixão”, um tipo de edificação que começou a ser construído na década de 1970 e se popularizou em Pernambuco, mas que anos depois tornou-se também uma dor de cabeça para o estado.
Esses prédios, que até 2023 abrigavam 11% da população do Grande Recife, foram construídos fora das normas legais da engenharia e com materiais sem durabilidade. O resultado é uma sequência de tragédias e desabamentos que deixaram um rastro de morte.
Foram pelo menos 18 desabamentos em cinco décadas, o último deles no fim de janeiro deste ano, com 54 mortes. “É um problema social porque ele [esse tipo de prédio] nasceu errado”, ressalta o conselheiro Bernhoeft.
Neste ano, completará duas décadas que os prédios-caixão foram proibidos em Pernambuco. Mas eles seguem causando problemas ainda hoje. Há bairros quase fantasmas cheios de edificações abandonadas, prédios ocupados de forma irregular e milhares de ex-moradores aguardando indenizações.
“Você não vai comprar um apartamento com 360 parcelas sabendo que ele vai cair, que ele vai ruir, que ele foi construído diretamente no barro”, pontua Costa.
O que são prédios-caixão e por que eles são um problema
Os prédios-caixão são edificações de “alvenaria resistente”, ou seja, construídas sem vigas, pilares e concreto armado. A despeito da quantidade de mortes que causaram, levam esse nome por causa do seu formato.
“Chamam de prédio-caixão porque é uma forma de caixa. É parede sobre parede, não tem detalhes arquitetônicos, volumosos, plásticos”, explica Carlos Wellington Pires, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP) e professor da Universidade de Pernambuco (UPE).
Os prédios foram construídos com até quatro pavimentos, para evitar o uso de elevador, como determinava a política urbana de solo, mas não seguiam nenhuma norma da engenharia. Apesar de não ser um modelo de construção exclusivo de Pernambuco, se popularizaram no estado pelo lobby de um sindicato de ceramistas que existia na década de 1970.
“O sindicato pressionava muito a Companhia de Habitação do Estado (Cohab). Apesar de não ter uma documentação normativa, alguns projetistas associados às construtoras começaram a projetar esses edifícios”, explica Pires. Segundo ele, a maioria das construtoras pernambucanas começaram a atuar no ramo erguendo esse tipo de imóvel. “Era a coisa mais simples e mais rentável”, detalha Pires.
Conjuntos habitacionais enormes foram construídos dessa forma, como o Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana, com 2,2 mil apartamentos. O residencial dos anos 1980 foi totalmente interditado pela Defesa Civil em 2014, e demolido em 2020.
Estima-se que haja 5,3 mil prédios-caixão no Grande Recife. Nem todos, entretanto, apresentam risco de cair. Um estudo de 2008 realizado pelo Itep identificou 226 imóveis com risco muito alto e ao menos outros 2.120 com risco alto no Recife e outras quatro cidades da região metropolitana.
Isso acontece porque algumas construtoras, para baratear a obra, utilizaram materiais sem durabilidade, que com o passar dos anos voltaram à forma de barro. Outras deixaram espaços embaixo da estrutura, que passou a acumular água e esgoto.
“Fizeram uma espécie de improviso. Pegaram um material que deveria ser usado apenas para vedação, que não tem função estrutural, e aplicaram em prédios para economizar, viabilizar a obra”, explica Bernhoeft.
O drama dos moradores e ex-moradores
“Foi o sonho que eu sonhei desde criança, porque a gente foi despejado”, conta Costa sobre ter uma casa própria. Ela morou no apartamento que comprou por 39 anos, mas em agosto de 2023 acordou com um susto.
Parte de um dos prédios do Conjunto Beira-Mar desabou. Dezesseis apartamentos do condomínio, localizado em Paulista, área metropolitana do Recife, colapsaram completamente. Outros oito imóveis caíram parcialmente. Vinte e uma pessoas foram atingidas, 14 morreram.
“Minha irmã bateu na porta, dizendo: ‘Sai, sai, vai cair’. Eu comecei a passar mal, porque tinha pressão alta.” O bloco que caiu estava a poucos metros da casa de Costa, mas o imóvel dela também foi interditado, e desde então a administradora vive numa casa cedida por um conhecido. “Ninguém foi mais o mesmo. Acabou com a gente.”
Dramas como o de Costa se multiplicam em Pernambuco, segundo a Federação das Associações de Moradores dos Núcleos de Cohab e Similares no Estado de Pernambuco (Femocohab-PE).
A própria presidente da entidade, Elivania Santos, tem um imóvel em um dos prédios que desabou. “Chegou o momento em que eu tive o prédio interditado, mas continuei com a cobrança de IPTU”, diz. Santos diz que conseguiu comprar outro imóvel, mas que essa não é a realidade de muitos ex-moradores. “Eu vejo pessoas doentes, acamadas, que estão na luta com câncer, com depressão, com ansiedade e sem norte”, diz.
Prédios interditados voltam a ser ocupados
Os prédios-caixão são também um problema de habitação em Pernambuco. O bloco que desabou em 2023 estava interditado desde 2010, por risco de desabamento, mas foi reocupado em 2012.
“Os prédios que estavam vazios foram ocupados por famílias de alta vulnerabilidade e se criou um problema social grave. Quando chegava a época de chuva, aconteciam os desastres e esses ocupantes não tinham cobertura de ninguém”, afirma Simone Nunes, secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Pernambuco.
De acordo com a Fundação João Pinheiro, Pernambuco tem um déficit habitacional de 221 mil domicílios, sendo cerca de 97 mil no Grande Recife. “Uma característica importante dessas construções é que elas, diferentemente do concreto, que racha, elas não racham, elas colapsam. Então, é muito difícil você dizer para uma pessoa em situação de rua que aquele lugar que está vazio oferece risco”, ressalta Nunes.
A busca por uma solução
Muitos prédios-caixão continuam habitados em Pernambuco. Em alguns casos, os próprios moradores se reúnem para custear reforços estruturais. Havia entretanto um passivo histórico relacionado a indenizações de ex-moradores e também à necessidade de evitar novas ocupações em prédios desabitados.
Em julho do ano passado, foi celebrado um acordo entre a entre a Advocacia-Geral da União (AGU), Caixa Econômica Federal, Estado de Pernambuco, Confederação Nacional das Seguradoras e Ministério Público do Estado de Pernambuco (MPPE).
Por meio dele, a União está indenizando em até R$ 120 mil cerca de 14 mil famílias de 431 prédios interditados. Também foi acordada a demolição desses imóveis e o repasse dos terrenos ao Estado, para construção de moradias populares e equipamentos públicos.
O governo também pagará auxílio-moradia às pessoas que passaram a ocupar os prédios interditados. “A solução não passava apenas pela demolição, para evitar a ocupação, mas também pela destinação dessas pessoas que estavam ocupando esses prédios para as políticas de moradia do Estado”, detalha a promotora de justiça do MPPE Maísa Oliveira.
O acordo, entretanto, tem gerado queixas de alguns ex-moradores, pelo valor pago e também porque não contempla pessoas que tinham apólices de seguro privadas. “Nesta semana tem mais prédios sendo interditados. Essa situação vai continuar acontecendo, só que agora com um agravante, porque a indenização é muito pouca, não dá para comprar outra unidade”, reclama Santos.
De acordo com o procurador do Ministério Público Federal Pedro Jorge Costa, o valor foi calculado considerando 75% do valor de um imóvel da faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida e após negociações com o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), responsável pelos pagamentos. A proposta é que o Estado entre com o restante.
“A gente sabe que nem sempre vai ser satisfatório para todo mundo, mas assim, foi um avanço em relação ao limite [imposto por resoluções do FCVS]. Anteriormente era R$ 30 mil o valor máximo para indenização”, explica Costa. Até então, R$ 68,6 milhões já foram pagos em indenização desde o ano passado.
Segundo o MPF e o MPPE, há um debate em curso para tentar contemplar ex-moradores com apólices de seguro privadas e sem seguro. “É uma solução que não é a ideal. O acordo nunca contempla todas as nossas expectativas. Mas, por outro lado, põe fim a uma incerteza, uma angústia de mais de 20 anos”, conclui Oliveira.