02/03/2020 - 12:00
A Justiça brasileira tem fama de ser lenta. E, quando se trata do Tribunal do Júri, responsável por crimes praticados intencionalmente contra a vida, a morosidade se revela ainda mais grave. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que cerca de 30% das ações sob responsabilidade do Tribunal do Júri prescrevem, ou seja, perdem a validade por causa da longa tramitação, o que, na prática, impede o Estado de punir os investigados e reforça a sensação de impunidade, destaca o jornal O Estado de S. Paulo.
Vão a júri popular crimes como homicídio, aborto e incitação ao suicídio. Um caso emblemático chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2013: um homem denunciado por tentativa de homicídio em 1994. Condenado a oito anos de prisão, ele entrou com uma série de recursos e conseguiu anular a sentença. Dezenove anos depois, o Supremo chegou a uma conclusão: o crime prescreveu.
O presidente do STF, Dias Toffoli, quer que a Corte também analise agora a possibilidade de início da execução de pena após sentença do Tribunal do Júri. Embora em novembro do ano passado o STF tenha derrubado o entendimento que previa a prisão após condenação em segunda instância – sob o argumento de que o réu tem direito a permanecer em liberdade até o fim de todos os recursos -, há outra questão a ser examinada. Toffoli é a favor de que condenados pelo júri cumpram imediatamente a pena.
Neste mês, começa a ser analisado pelo Tribunal do Júri outro caso de repercussão que ainda não tem punição: o incêndio da Boate Kiss, que deixou 242 mortos em Santa Maria (RS) há sete anos.
“O Poder Judiciário deve estar comprometido com o combate aos crimes dolosos contra a vida – verdadeira e trágica epidemia em nosso País -, dando prioridade aos julgamentos dos Tribunais do Júri, evitando-se prescrições, adiamentos e dando prioridade máxima aos casos de feminicídios”, disse Toffoli ao Estado. “O Judiciário está fazendo sua parte para não haver impunidade nestes que são os piores crimes, pois atentam contra a vida das pessoas.”
Medidas
Toffoli entregou ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no último dia 19, uma proposta para dar mais agilidade aos julgamentos. O texto foi preparado por um grupo de trabalho do CNJ coordenado pelo ministro Rogerio Schietti, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Entre as principais medidas sugeridas estão a redução do número de jurados e do tempo de debates para casos de homicídios simples e até a previsão de multa e sanção disciplinar para promotores e advogados que abandonarem as sessões. Além disso, outro ponto destacado é que, hoje em dia, muitos julgamentos são adiados por causa de ausência de testemunha. A ideia é que um julgamento não seja impedido se uma testemunha já ouvida na primeira fase deixar de comparecer novamente à Justiça, a menos que uma das partes demonstre haver, de fato, algo novo a ser informado por aquela pessoa.
Na avaliação do presidente da comissão especial que analisa mudanças no Código de Processo Penal, deputado Fábio Trad (PSD-MS), é possível que a Câmara vote as novas medidas até outubro, antes das eleições municipais. “Vamos analisar a proposta com muita vontade, porque ela vai ao encontro dos valores constitucionais de desburocratização e simplificação dos procedimentos no Tribunal do Júri”, afirmou Trad.
A proposta do CNJ para agilizar os julgamentos também prevê, em casos menos complexos, a diminuição do tempo para manifestações de advogados das partes e do Ministério Público. Em um dos pontos considerados mais polêmicos, o texto ainda sugere reduzir de sete para cinco o número de jurados que integram o Conselho de Sentença em casos mais simples.
A diminuição do tamanho do júri é criticada pela professora de Direito Penal da FGV São Paulo Raquel Scalcon. “Se a gente está reduzindo para cinco jurados, significa que, se três concordarem em condenar, já se condena o réu. É um número questionável. A redução de pessoas torna os julgamentos mais frágeis”, argumentou Raquel. “Acho que a proposta quer enfrentar um problema que não vai resolver. Ela me parece um pouco perigosa, no sentido de se preocupar com a questão dos jurados”, disse.
No Brasil, os jurados não podem se comunicar entre si durante o julgamento, o voto de cada um é sigiloso e o resultado da maioria simples implica na absolvição ou na condenação do réu. Já nos Estados Unidos, os integrantes do júri podem debater o caso. Para condenar alguém, no entanto, é preciso que o entendimento dos jurados seja unânime.
Poucos juízes
Coordenador do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que elaborou proposta para agilizar os julgamentos do Tribunal do Júri, o ministro Rogerio Schietti disse ao Estado que crimes contra a vida devem ter prioridade. “Homicídio é o crime mais grave, que não tem reparo.” Veja abaixo trechos da entrevista.
O cenário atual escancara o quadro de impunidade no País?
Da mesma forma que não pode existir Justiça sumária, como se fazia séculos atrás, você também não pode ter julgamentos excessivamente longos, porque isso implica na perda da qualidade dos julgamentos.
Essa demora da Justiça passa a impressão de que o crime compensa?
É frustrante, por isso que precisamos ter uma Justiça mais ágil. É preciso dizer o seguinte: isso não é só por culpa nossa, mas por uma excessiva litigiosidade. Nós somos um dos países em que mais se praticam crimes no mundo. Um número astronômico, de guerra, de homicídios. O Brasil é um país onde se comete muito crime e aí você não tem juízes suficientes para julgar e você não tem uma estrutura para executar essas penas.
A resposta da Justiça deveria ser ainda mais rápida em crimes contra a vida?
Deveria ser. Por isso é que fizemos questão de enfatizar a necessidade de os tribunais terem como prioritária a tramitação dos processos dos crimes dolosos (praticados com intenção) contra a vida, porque é o crime mais grave. Homicídio é crime que não tem reparo.
Qual o efeito da sensação de impunidade?
Uma tendência a se estimularem reações da própria sociedade. O que é o linchamento? É um sinal muito claro da falta de confiabilidade nas instituições, na Polícia, no Ministério Público, no Judiciário. O Brasil é um país que tem alto índice de criminalidade e baixo índice de efetividade da punição dos autores.
O STF vai definir em abril se uma decisão do Tribunal do Júri já deve marcar o início da execução da pena. Qual a sua opinião?
Sou contra. É um direito de qualquer pessoa ter a condenação revista por um tribunal, antes de iniciar a pena. Entendo que não é a natureza do crime que pode determinar já o início da pena antes de ser julgado o recurso em segundo grau. Sou a favor da execução da pena a partir do julgamento em segundo grau.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.