15/01/2019 - 9:00
A Segunda Guerra Mundial teve um personagem decisivo no combate ao exército alemão: o matemático considerado o pai da computação Alan Turing, um jovem aluno da Universidade de Cambridge que foi recrutado pela agência de inteligência britânica MI6 para decifrar as mensagens criptografadas transmitidas pelo Enigma, um equipamento semelhante a uma máquina de escrever que era utilizado pelos alemães para transmitir informações confidenciais sobre as estratégias de combate.
Junto com a cientista Joan Clarke, Turing conseguiu ‘hackear’ o sistema nazista, permitindo descobrir antecipadamente o local e datas dos próximos ataques do inimigo, coordenadas que foram determinantes para os aliados se prepararem para os combates e colocarem um ponto final nos horrores da guerra.
A história de Turing, contada no filme “O Jogo da Imitação”, de 2014, estrelado por Benedict Cumberbatch no papel do criptoanalista, explica porque o domínio da Internet e das telecomunicações se tornou tão estratégico para vencer a próxima guerra, que, ao invés de ser travada nas trincheiras, provavelmente terá como cenário, já está tendo na verdade, o mundo cibernético.
A razão é clarividente: na próxima geração da Web, da Internet das Coisas, tudo estará conectado e seremos cada vez mais dependentes da nuvem e das redes de comunicação para manter rodando um país, uma economia online.
Minuto de reflexão.
E se um ataque cibernético chinês conseguisse infectar o sistema financeiro americano? Já pensou o que aconteceria caso o presidente Xi Jinping autorizasse a invasão de sistemas de serviços essenciais, como energia, transportes, saúde, telefonia e a própria Internet, deixando seus inimigos completamente “fora do ar”?
Cabe sublinhar, as notícias sobre violações de bancos de dados e espionagem são cada vez mais recorrentes, evidenciando os grandes riscos a que todos nós, de políticos a cidadãos comuns, estamos sendo expostos para garantir a preservação da privacidade, o que, todos sabemos, se tornou mera ilusão.
Para além do aumento das taxas de importação de bens de consumo e insumos, questão em torno da qual os 2 países vêm negociando uma trégua, a guerra comercial entre Estados Unidos e China está sendo travada em torno da liderança do mercado global de tecnologia. A briga, que está só começando, é pelo comando da próxima geração da Internet e das novas tecnologias que serão determinantes na disputa pelo posto de maior potência mundial, como a Inteligência Artificial e as redes de transmissão de dados em altíssima velocidade que vão suportar a Internet das Coisas.
E a questão da segurança nacional é apenas uma das que está em jogo nesta batalha. Trata-se não somente de uma disputa para equilibrar a balança comercial. O embate é para decidir quem vai continuar pilotando a nave da economia mundial nas próximas décadas, séculos.
Episódios recentes foram identificados como claros indicativos das ações do governo americano contra o avanço da Ásia, particularmente da China, no setor de tecnologia, como o veto do presidente Trump para venda da Qualcomm para Broadcom, de Cingapura; e a prisão da executiva Meng Wanzhou, Chief Financial Officer da Huawei, sob a acusação de violar sanções à transferência de tecnologia americana para o Irã.
A poderosa fabricante de smartphones e de redes de infraestrutura poderá ter seus planos de se tornar uma das principais empresas do mundo no desenvolvimento de redes 5G ameaçados por conta das restrições impostas pelos Estados Unidos e seus aliados para fechar negócios com a companhia chinesa de telecom. Países como Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido já decidiram banir o uso de equipamentos da Huawei na construção das redes 5G. A ZTE, outra grande empresa de telecom chinesa, foi multada no ano passado em US$ 1 bilhão por desrespeitar regras de mercado.
Até aqui os Estados Unidos foram os donos da bola. O Vale do Silício foi o berço das tecnologias que nos trouxeram onde estamos. Microsoft e Apple, Gates e Jobs, criaram o alicerce das indústrias de hardware e software (PCs, smartphones, sistemas operacionais e aplicativos), enquanto a China acabou se tornando o centro mundial de fabricação de equipamentos (hardware) das empresas americanas.
A invenção da Internet deu à luz uma nova indústria de serviços digitais criados pelas gigantes da tecnologia que revolucionaram nossas vidas para sempre e nos modificaram geneticamente, transformando a raça humana em “homo digitalis”. Com isso, basicamente tudo que fazemos on-line passa atualmente (de uma forma ou de outra) por um servidor de uma empresa americana que, ao final do dia, sabe tudo sobre nós.
Mas o jogo vem mudando rapidamente nos últimos anos com os pesados incentivos do governo chinês ao desenvolvimento de tecnologias em diversas áreas e, em paralelo, a restrição ao acesso a Internet mundial. A proibição imposta por Jinping acabou por fortalecer a indústria digital local. Hoje, 9 das maiores empresas de tecnologia do mundo são chinesas e as demais são todas americanas, sendo 3 asiáticas entre as Top 10, de acordo com o último estudo Internet Trends 2018 da Mary Meekers – Alibaba (6a), Tencent (7a), Ant Financial (9a), Baidu (13a), Xiaomi (14a), Didi Chuxing (16a), JD.com (17a), Meituan-Dianping (19a) e Toutiao (20a).
O Grande Firewall Chinês criou uma muralha que impede a entrada das gigantes americanas e de outros países, o que obrigou a audiência chinesa de (respirem!) 800 milhões de usuários de Internet, 98% deles mobile users, a acessar exclusivamente os serviços das empresas nacionais que se tornaram copycats das gringas. Para ter uma ideia do que esta massa de consumidores representa, o mercado de mobile payment chinês é estimado em US$ 15,4 trilhões (sim, trilhões) e é 40 vezes maior que o americano.
O Alibaba, com 617 milhões de usuários mobile por mês e avaliado em US$ 509 bilhões, é o concorrente chinês da Amazon (US$ 783 bilhões). A Tencent, que já chegou a atingir valor de mercado de US$ 550 bilhões (hoje em US$ 483 bilhões), é o Facebook (US$ 538 bilhões) dos chineses e tem como seu grande trunfo o app de mensagens WeChat, o WhatsApp do Oriente com mais de 1 bilhão de usuários.
O buscador Baidu, com valuation de US$ 84 bilhões, decolou com a saída do Google (US$ 739 bilhões) do território chinês em 2010. A Xiaomi, avaliada em US$ 75 bilhões, é a Apple (US$ 924 bilhões) chinesa com 92 milhões de celulares vendidos em 2017. Há muitas outras fabricantes de smartphones da China, vale o parêntese, que vêm tirando o sono das grandes fabricantes de celulares, como a própria Huawei, a Oppo e a Vivo. A Didi, com valuation de US$ 56 bilhões, é o competidor do Uber (US$ 72 bilhões). A iQiyi, com valor de mercado de US$ 12.7 bilhões, é a Netflix chinesa (US$ 152 bilhões).
Há outras empresas de destaque fora da lista das 20 maiores, como a ByteDance, avaliada em US$ 75 bilhões, uma plataforma de social media que já vem, inclusive, ganhando tração no mercado americano com seu app de video curto TikTok.
Alguém tem dúvida de que o plano dos chineses é conquistar novos mercados no mundo e tornar estas empresas globais, como já vêm, de fato, tentando?
Não é por acaso que elas já têm escritórios instalados no Vale do Silício e em outros grandes centros mundiais de tecnologia. Os Estados Unidos sabem que quanto mais fecharem o ecossistema de negócios americano mais irão sufocar os chineses, impedindo que avancem sobre o novo mundo e encerrando o confortável reinado de Tio Sam na economia digital.
O governo americano e os congressistas estão bem preocupados com a ameaça tecnológica chinesa. Dois senadores, Mark Warner, um democrata da Virginia, e Marco Rubio, republicano da Flórida, propuseram recentemente uma lei para garantir maior segurança aos Estados Unidos. Na mira estão produtos estrangeiros, especialmente os chineses fabricados por Huawei e ZTE.
“Está claro que a China está determinada em usar todas as ferramentas do seu arsenal para superar os Estados Unidos tecnologicamente e dominar o país economicamente”, escreveu Warner em comunicado. “A China continua a conduzir uma ação coordenada para assaltar a propriedade intelectual e os negócios americanos e as redes de informação do Governo com o total apoio do partido comunista chinês. Os Estados Unidos precisam de uma ação mais organizada para endereçar estas ameaças e garantir uma melhor proteção da tecnologia americana”, emendou Rubio.
Entre 1991 e 2016 o governo chinês multiplicou por 30 os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, ultrapassando o volume aplicado no Japão desde 2009, e a expectativa do Organization for Economic Cooperation and Development prevê que o País irá superar os Estados Unidos neste ano de 2019.
A ambição dos chineses vai muito além, incluindo se tornarem os líderes mundiais em inteligência artificial em 2030. O presidente russo Vladimir Putin já acendeu o alerta: o país que liderar a IA será o dono do mundo. E a China sabe disso. O país também quer estar entre os 5 maiores países no desenvolvimento e registro de patentes já no próximo ano e garantir uma posição de destaque em áreas como biotecnologia, nanotecnologia e medicamentos.
Na Guerra Fria do Século XXI, o foco do país não está apenas na internet e em telecomunicações. Os orientais vêm conquistando notoriedade também em outras áreas no mercado de tecnologia. No setor automotivo, o plano é que 70% da produção local seja de veículos híbridos e elétricos até 2025 e atualmente já há mais de 200 mil pontos públicos de recarga espalhados pelo País, tornando o país o líder mundial em carros elétricos.
Na indústria de semicondutores, a China é de longe a maior compradora de chips de computadores, com um consumo aproximado de 60% do mercado global, estimado em US$ 354 bilhões em 2015, mas ainda perde a posição de maior fabricante mundial para os Estados Unidos. Os chineses tiveram duas tentativas frustradas pelo governo americano de investir em companhias do setor e o governo chinês decidiu direcionar US$ 22 bilhões para empresa Tsinghua Unigroup ajudar na construção da primeira fábrica de chips da China.
No campo da Internet, a tendência é que os Estados Unidos continuem controlando os servidores e as maiores redes de comunicação do planeta e, quem sabe até, dar um salto gigantesco quando a SpaceX, empresa de Elon Musk, colocar em órbita os 12 mil satélites da Starlink, um serviço de Internet que irá oferecer acesso em banda larga para qualquer internauta em qualquer lugar do mundo; quem sabe até mesmo na China.
E você? Prefere ter seus dados guardados em Xinjiang, onde cada passo seu é monitorado por milhares de câmeras de segurança, ou na Califórnia por empresas que têm sido constantemente envolvidas em denúncias de vazamento de informações dos usuários? Confiaria mais na China ou nos Estados Unidos para cuidar da sua privacidade?
Sem dúvida, uma escolha difícil.
(*) Omarson Costa é formado em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet
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