Os planos da Vale de tirar do papel um projeto bilionário de mineração, que ficou paralisado por anos, para expandir sua produção de minério de ferro, tem sido alvo de polêmica e preocupações sobre o impacto ambiental na região do Parque Nacional (Parna) da Serra do Gandarela, em Minas Gerais.

Ambientalistas e pesquisadores alertam que a implementação do empreendimento em uma das poucas áreas de Minas ainda intocadas pela mineração ameaça a biodiversidade e pode destruir um aquífero responsável por abastecer com água mais de dois milhões de pessoas em Belo Horizonte e Região Metropolitana.

Em nota, a Vale nega impacto sobre os recursos hídricos e afirma que o projeto seria implementado após o ponto de captação de água. “A empresa irá monitorar os cursos d’água e, caso seja verificada qualquer alteração, será feita a reposição conforme exige a legislação”, diz.

A região em questão está localizada no chamado Quadrilátero Ferrífero, uma zona de montanhas ricas em ferro no centro-sul do estado. A área abrange diversos municípios, incluindo Mariana, onde o rompimento de uma barragem em 2015 causou danos persistentes até hoje.

Vista do Mirante Maquiné, na Serra do Gandarela (Crédito:Paulo Baptista)

Batizado de Projeto Apolo, o plano da Vale para a última zona da região intocada pela mineração iniciou em 2009. Foi pausado em meio às tragédias com rompimento de barragens, e retomado após uma década com um novo formato, que a mineradora alega ser “mais sustentável” por não gerar rejeitos e eliminar o uso de barragens.

A Vale tem promovido audiências públicas para explicar e defender o novo empreendimento, mas a empresa ainda aguarda a avaliação das autoridades e depende de licenciamento ambiental.

O novo Projeto Apolo

O investimento feito pela empresa no Projeto Apolo chega a US$ 2 bilhões. A previsão de quantidade de minério de ferro extraída anualmente após início das operações chega a 14 milhões de toneladas por ano.

Há ainda a previsão de gerar cerca de 2.600 empregos temporários no pico das obras. Após o início da operação, a estimativa é de 740 empregos diretos entre funcionários próprios e terceirizados, além de 2.100 empregos indiretos. A massa salarial seria de R$ 138 milhões, com adição de R$ 151 milhões em impostos.

Sem barragens

A Vale reestruturou o projeto ao longo de uma década para eliminar o uso das polêmicas e perigosas barragens. “Com a adoção do processamento de minério de ferro a umidade natural, a necessidade de água nova para o novo projeto reduziu em 95%”, informa em nota.

No lugar das represas, seria utilizada uma pilha de estéril, método já adotado em outras regiões do estado que amontoa os resíduos secos.

O geólogo Paulo Rodrigues, pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN), afirma, porém, que a medida pode ser ainda mais arriscada, pois as pilhas, diferente das barragens, não são cercadas adequadamente.

“Com as chuvas que nós estamos tendo, cada vez mais fortes por conta das mudanças climáticas, o material das pilhas vai espalhar para tudo quanto é canto”, afirma Rodrigues.

Ao menos um caso assim já foi registrado em 2022, quando uma montanha de resíduos da mineradora Vallourec desabou. Os detritos chegaram a um dique e acabaram espalhados pela rodovia BR-040, que ficou interditada por dois dias na altura do município de Nova Lima.

O aquífero

Porém a maior preocupação é com os potenciais danos causados pela mineração no aquífero Cauê, que abastece a bacia do Rio das Velhas, aponta o geólogo Paulo Rodrigues.

Aquíferos são as zonas subterrâneas onde ficam armazenadas as águas que, ao emergir da terra, criam as nascentes dos rios. Esses reservatórios naturais são abastecidos pelas chuvas, que são trazidas dos oceanos.

Cachoeira do Índio, na Serra do Gandarela (Crédito:Paulo Baptista)

Segundo Rodrigues, o Cauê possui uma configuração única em relação aos demais do mundo: é um aquífero vertical, feito de ferro e de uma pedra denominada canga, materiais porosos, que permitem a entrada de água sem contaminação.

Há plena chuva mansa na região – ideal para reabastecimento de aquíferos, pois demora mais a escorrer e assim é mais absorvida – e baixo teor de minerais que sofrem intemperismo, ou seja, que se decompõem e contaminam a água.

Rodrigues explica que, como o aquífero é feito de ferro, é impossível compatibilizar a mineração e a manutenção do reservatório. Retirar o minério seria remover o próprio sistema de captação. “Quando eu destruo o aquífero e seu mecanismo de captação de água, é irreversível”, alerta.

Em nota, a Vale afirma que irá monitorar o curso da água dos rios para que seja feita reposição em caso de alteração. A empresa afirma porém que o faria com a própria água do aquífero.

O parque

A Vale alega que a mineração não destruirá a serra e o aquífero pois há uma parte da região protegida pelo Parna da Serra do Gandarela, criado em 2014. “Quase 50% da área do parque, o que representa 15 mil hectares do total de 31.270 hectares da unidade de conservação, pertencem à empresa e poderão ser doados ao ICMBio como compensação ambiental de projetos”, acrescenta.

Porém o limite do Projeto Apolo informado pela mineradora fica a apenas cerca de 80 metros do início do parque em um ponto. Além disso, as divisas do parque não estão de acordo com a recomendação dos técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela criação e gestão das unidades de conservação federais.

“A principal parte da serra ficou de fora. Foi criado o Parque da Serra do Gandarela sem a Serra do Gandarela”, afirma João Madeira, biólogo que era coordenador de Criação de Unidades de Conservação e de Diagnóstico no ICMBio quando foi elaborado o projeto do parque.

No mapa a seguir, elaborado por Paulo Rodrigues, é possível identificar a Serra do Gandarela:

Mapa do quadrilátero ferrífero destaca a posição de Belo Horizonte. A linha amarela representa a Serra do Gandarela (Crédito:Cartografia/Paulo Rodrigues)

Outro mapa mostra, dentro da linha preta, os limites do Parna. A linha branca com contornos vermelhos é a localização prevista para a mina da Vale.

Mapa destaca na linha preta os limites do Parna. A linha branca com contornos vermelhos mostra os limites do projeto Apolo (Crédito:Cartografia/Paulo Rodrigues)

Neste outro mapa, é possível ver a comparação da área da cava com a cidade de Belo Horizonte:

Projeção do tamanho da cava sobre a cidade de Belo Horizonte (Crédito:Cartografia/Paulo Rodrigues)

Segundo a Vale, a criação do parque reduziu em 32% a área do Projeto na comparação com o escopo de 2009, passando de 2.000 hectares para 1.368 hectares. São 890 campos de futebol a menos na área do empreendimento.

Com a maior parte da serra fora do Parque, Rodrigues dá como certa a destruição da capacidade de captação e armazenamento do aquífero. “Não vai sobrar água suficiente para alimentar uma população que não para de crescer”, diz.

Além disso, haveria consequências para o próprio propósito do parque. “Parques nacionais ecológicos precisam das paisagens, que é o que se tem ainda por lá”, afirma Madeira. “Você vai deixar de ter se tiver só um buraco imenso de mineração, cheio de caminhões gigantescos.”

A destruição da Serra levaria também a redução da vegetação de cangas, com espécies em risco de extinção no país justamente por conta da destruição das camadas de pedra pela mineração.

Paleotoca

Ficou de fora dos limites do Parna outra preciosidade da região: a paleotoca, um sistema de cavernas que serviu de morada para um animal pré-histórico, provavelmente um bicho-preguiça gigante.

Descobertas em 2011, as cavidades na canga não podem ser destruídas por serem consideradas cavernas de relevância máxima. A proposta da Vale é deixar um “perímetro protetivo” com raio de 250 metros ao redor delas.

O biólogo João Madeira afirma que a proposta segue absurda. “Vão cavar 250 metros ao redor de um raio de 250 metros. Vai ficar uma grande coluna no meio do nada. Do que adianta preservar isso? Quem vai poder visitar esta caverna?”

População dividida

Nas reuniões promovidas para debate do projeto da Vale com a comunidade, há geralmente uma divisão. Parte dos moradores sentem-se atraídos pela proposta de criação de empregos, enquanto a outra chama atenção para a finitude dos recursos e os impactos deixados.

“Emprego em mineração é temporário, porque o minério não é pra sempre” afirma a bióloga e professora da rede pública Daniela Campolina, moradora da região da Serra. “E quando as pessoas falam: você tem celular, você tem vários objetos de ferro, eu respondo: mas você bebe água. Que atividade existe sem água? Ninguém bebe minério.”

Organizações da sociedade civil como a Fundação SOS Mata Atlântica também têm realizado oposição ao Projeto Apolo. “É fundamental que haja atenção tanto do governo federal como do governo do estado para a proteção dessa região e ampliação do Parque da Serra do Gandarela”, afirma Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da instituição. Campanhas e abaixo-assinados contra o avanço do projeto também tem se espalhado nas redes.

Procurado, o governo do estado de Minas Gerais informou que dois processos tramitam atualmente na Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) referentes ao Projeto Apolo.

“Os referidos processos estão em fase de análise pela equipe técnica e todas as medidas de compensação bem como a definição dos monitoramentos contínuos serão definidos no parecer do licenciamento, que se encontra em elaboração”, conclui o governo em nota.

Campos rupestres na Serra do Gandarela (Crédito:Paulo Baptista)