Mal o ano começou e acredito que muitos de nós já tenhamos tido a oportunidade de constatar que grande parte dos propósitos que tínhamos formulado há poucos dias caíram no esquecimento ou foram abandonados. Essa é uma das experiências mais comuns e frequentes: todo ano é assim. E mesmo quando somos pessoas mais determinadas e disciplinadas, que uma vez comprometidas somos capazes de ‘matar ou morrer’ para cumprirmos nossos propósitos, por que muitas vezes nosso sucesso vem contaminado com uma certa sensação amarga de frustração?

O tema do propósito é, sem dúvida, um dos mais recorrentes no universo profissional/corporativo. Hoje todos sabemos que é quase impensável trabalharmos ou nos envolvermos em um projeto sem um ou diversos propósitos que, segundo somos levados a acreditar, não apenas garantem o sucesso, como também são essenciais para nos proporcionar a própria felicidade. Ninguém discorda, a princípio, dessa máxima, porém, na medida em que vamos nos engajando e procurando realizar tais propósitos na esperança de nos realizarmos com eles, percebemos que ao atingi-los, parcial ou totalmente, o que encontramos e sentimos é muito diferente do que nos prometiam ou o que nós mesmos esperávamos. O que estaria errado: a mania de formular propósitos ou o sentido e a qualidade dos propósitos que formulamos?

O tema do propósito é, sem dúvida, um dos mais recorrentes no universo profissional-corporativo. Hoje todos sabemos que é quase impensável trabalharmos ou nos envolvermos em um projeto sem um ou diversos propósitos

Tal dilema me remete a um pequeno grande clássico da literatura que utilizo com frequência em meus encontros de Laboratório de Leitura com líderes e gestores corporativos: O Conto da Ilha Desconhecida, do Nobel português José Saramago. Nesta singela, mas profunda parábola literária, um certo homem que queria um barco se apresenta diante da porta das petições do palácio real para demandar a presença do rei, que, por estar sempre ocupado na porta dos obséquios, nunca aparecia por lá. Mas tanto insistiu o homem que queria o barco que, a ponto de quase provocar um motim ou uma revolução social, conseguiu, de forma inédita, a presença do rei. Quando este, intrigado e irritado com a insistência e insolência daquele homem, lhe pergunta o que queria, o audaz demandante lhe pede um barco. “Mas para que queres um barco?”, pergunta-lhe o rei. “Para ir em busca da ilha desconhecida”, responde-lhe o homem. “Mas para que queres encontrar uma ilha desconhecida?”, torna perguntar o rei. “Para saber quem eu serei quando lá estiver”, devolve-lhe o homem que queria o barco.

Ir em busca da ilha desconhecida para saber quem eu serei quando lá estiver… Eis aí um verdadeiro propósito. Não algo que se limita a uma coisa, um bem material, um cargo ou posição social, mas um objetivo de caráter existencial, que se identifica com autoconhecimento e autorrealização. Mais uma vez a literatura nos ensinando a repensar e requalificar não só nossas crenças e valores, mas também nossos sonhos e projetos. A lição de Saramago em O Conto da Ilha Desconhecida pode nos ajudar a readequar nossa lista de propósitos para o ano que ainda começa e talvez nos possibilitar uma reordenação das nossas metas, visando mais nosso crescimento existencial que simplesmente profissional ou material. Podemos encarar os desafios e metas deste ano como verdadeiras ilhas desconhecidas que podem nos ajudar em nosso autoconhecimento, na medida em que nos mostram o que seremos quando lá estivermos.

Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de ‘Responsabilidade Humanística — Uma Proposta para a Agenda ESG’ (Poligrafia Editora)