Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional travam embate sobre tema historicamente polêmico no Brasil.O debate em torno da descriminalização do porte de maconha acirrou ainda mais a já conflituosa relação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Ministros e parlamentares analisam propostas diferentes sobre o mesmo tema, e o andamento em cada uma das instituições poderá determinar o futuro do debate sobre as drogas no Brasil.

No STF, o julgamento iniciado em 2015 já foi interrompido por pedidos de vista (quando um ministro pede mais tempo para analisar o assunto) em três oportunidades. Em março deste ano, o presidente da corte suprema, Luís Roberto Barroso, deu continuidade à análise.

A avaliação no Supremo vai definir um critério objetivo para aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, que criminaliza a posse (ter) e o porte (levar consigo) de qualquer droga – a maconha não é citada especificadamente na lei, apesar de ter se tornado objeto da análise na corte. Para alguns juristas, essa jurisdição fere o artigo 5º da Constituição, que determina serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

O artigo 28 não prevê prisão pelo porte ou produção para consumo próprio, mas sanções. No entanto, não há um critério objetivo que diferencie o tráfico de drogas do consumo próprio. Na prática, quem decide isso são policiais, Ministério Público ou juízes, em cada ocorrência.

Até o início de março, o placar no Supremo estava assim: cinco ministros (Gilmar Mendes, Edson Fachin, Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber) votaram a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio.

Por outro lado, três ministros (Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça) votaram contra a descriminalização. O ministro Dias Toffoli pediu vista, e o julgamento foi interrompido novamente.

O debate no Congresso

No início de abril, em reação ao avanço da matéria no Supremo, o Senado decidiu pautar a PEC das Drogas, uma proposta de emenda à Constituição que determina como crime portar ou possuir qualquer quantidade de droga, mesmo que para consumo próprio. Na ocasião, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse no plenário que “a descriminalização da maconha não pode ser feita por decisão judicial”.

“De certa forma, há um embate entre os poderes Legislativo e Judiciário”, comenta o professor de direito constitucional Rodrigo Brandão, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Embora o Legislativo tenha primazia em regular a matéria, a ausência de lei com critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes tem ensejado inconstitucionalidades, por violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade e por dificultar o combate às facções criminosas”, afirma.

O jurista Cristiano Maronna, diretor da Plataforma Justa, especializada em segurança pública e acesso a dados da Justiça, concorda que o STF atuou no vácuo deixado pelo Congresso. “A análise sobre a constitucionalidade da lei que criminaliza a posse de uso de drogas para consumo pessoal é uma função típica de cortes constitucionais, como o STF. Outras cortes constitucionais fizeram o mesmo e declararam os respectivos dispositivos legais inconstitucionais. Isso ocorreu na Colômbia (duas vezes), na Argentina, no México e na África do Sul”, afirma.

Brandão avalia ainda que o debate no STF destaca a violação do artigo 5º da Constituição, que ressalta que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

“É a ofensa à dignidade como autonomia: o direito de cada um viver a sua vida de acordo com as suas decisões”, diz Maronna. Para ele, há também violação do princípio da igualdade, pois a falta de uma distinção clara entre usuário e traficante acaba prejudicando sobretudo negros e pobres, que não raro são considerados traficantes em situações em que brancos e ricos são considerados usuários. A PEC piora ainda mais essa situação, diz.

E esse foi um dos argumentos utilizados por Moraes ao defender a descriminalização do porte. “Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante”, disse o ministro.

Barroso apresentou argumento semelhante. “Se um garoto branco, rico e da Zona Sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado. No entanto, se a mesma porção é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso”, exemplificou o ministro do STF.

O senador Efraim Filho (União-PB), relator da PEC no Senado e contrário à descriminalização, afirma que a lei não vê cor ou condição social e que, se isso acontece na prática, deve-se corrigir a aplicação da lei. “Cabe, por exemplo, ao CNJ [Conselho Nacional de Justiça] chamar os juízes para fazer seminários e orientar, aplicar de forma correta, tratar o usuário sem encarceramento e tratar o traficante com o rigor da lei”, defendeu.

Qual quantidade diferencia o usuário do traficante?

Um dos pontos centrais na discussão no STF é a determinação da quantidade de maconha que caracteriza consumo individual. Mendes, Moraes, Weber (hoje aposentada) e Barroso a fixaram em 60 gramas ou seis plantas fêmeas. Fachin não fixou uma quantidade para a definição de usuário e argumentou que isso cabe ao Legislativo.

Já os ministros Zanin e Nunes Marques limitaram a quantidade que caracteriza uso em 25 gramas ou seis plantas fêmeas. Mendonça optou por 10 gramas.

Defensor da PEC, o senador Rogério Marinho (PL-RN) afirmou que a determinação da quantidade que caracteriza consumo deve ser feita por autoridades que estão na ponta do sistema de Justiça. “É quem faz de fato a apreensão, quem está com a mão na massa e não quem está num gabinete com ar refrigerado”, diz o senador.

O advogado criminalista Erik Torquato, membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, diz que a determinação de uma quantidade não deveria ser o foco da análise do Supremo. “O que o STF foi chamado a fazer é uma análise de compatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas com a Constituição “, critica, argumentando ainda que determinar se uma pessoa é usuária ou traficante apenas a partir da quantidade é um erro.

“Essa articulação que está acontecendo, de construir uma tese a partir da dosagem, é uma tentativa de atender a um anseio político que nada tem que ver com a tese inicial do julgamento, que é a garantia de direitos fundamentais protegidos na Constituição e que são violados pela norma que criminaliza a conduta do usuário”, prosseguiu Torquato.

Já o professor de direito penal Thiago Bottino, da FGV-Rio e da Unirio, afirma que a definição da quantidade “reduziria a subjetividade dos agentes públicos na avaliação de quem é traficante ou usuário” e que “critérios objetivos trazem maior igualdade de tratamento dos cidadãos, independentemente de raça, condição social ou idade”.

Assim, ele não vê problema em o Supremo, “por ter julgado centenas de milhares de casos envolvendo drogas”, fixar um critério que oriente o funcionamento do sistema de Justiça, “como já ocorre toda vez que consolida jurisprudência sobre algum tema.”

Questão racial

Defensores da descriminalização argumentam que ela ajuda a diminuir o encarceramento de jovens, sobretudo pretos e pobres, abordados com pequenas quantidades de drogas. Já os contrários à proposta dizem que a descriminalização aumentará o consumo de substâncias proibidas entre os jovens.

Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (Ipea) de outubro de 2023 mostra que o número de réus negros em crimes por tráfico de drogas é duas vezes superior ao de brancos.

De acordo com o levantamento, a maioria dos réus processados por tráfico de drogas é do sexo masculino (86%), tem até 30 anos (72%) e possui baixa escolaridade (67% não concluiu o ciclo de educação básica).

Para Bottino, a atual aplicação da Lei de Drogas faz com que uma parte dos usuários seja tratada como traficante, sobretudo jovens negros, de periferia e com baixa escolaridade, em razão da falta de critérios diferenciadores.

Ele afirma que a Lei de Drogas “é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil”, ressaltando que o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 745 mil presos – atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e da China (1,7 milhão).

Para Bottino, o usuário de drogas não deveria ser tratado como criminoso porque sua conduta não causa danos a outras pessoas. Polícia, Ministério Público e Judiciário deveriam dedicar seu tempo e recursos apenas às condutas mais graves. “É possível fazer um paralelo com o trânsito: quem ultrapassa a velocidade é multado, mas isso não é um crime. Se ultrapassar o sinal e atropelar alguém, aí sim é crime. Da mesma forma, portar maconha não deveria ser crime. Se praticar um crime sob efeito da droga, isso poderia agravar a pena.”

O ativista Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, diz que o debate sobre a política de drogas é uma questão racial. “A lei, como está hoje, produz um massacre racial.”

“Não podemos esquecer que é ano eleitoral e isso está [no âmbito] da pauta dos costumes. Mas é evidente que o debate supera isso [a política de drogas]. Trata-se do encarceramento, de uma política de morte e do direito individual garantido pela Constituição”, diz.

Mesmo se a PEC for aprovada no Congresso, ela ainda poderá ter sua constitucionalidade questionada no próprio STF.