O termo “populismo” não deve ser banalizado. Ele é muito mais do que uma mera palavra utilizada para desqualificar opositores políticos, visto que sabota as instituições democráticas de dentro para fora. Ele é uma ideologia na qual líder ou movimento afirma ser o único com legitimidade para trazer o poder de volta para o povo e derrotar as elites. Nele, tudo vale em nome do poder, inclusive sacrificar a própria democracia, e é isso o que aconteceu na Rússia.

Quando assumiu a Presidência da Rússia há quase 22 anos, o ex-agente do KGB, o serviço secreto russo, tinha um discurso muito diferente do atual. Ele apresentava a democracia como um valor indispensável e fundamental, como a principal finalidade da política. Putin dizia que “só um Estado democrático é capaz de garantir o equilíbrio dos interesses do indivíduo e da sociedade, combinando a iniciativa privada com os objetivos nacionais.” No entanto, seu discurso começou a mudar a partir de 2012, após os Protestos da Praça Bolotnaya, que demandavam eleições mais transparentes.

+ Somos todos vítimas da guerra; somos todos vítimas do clima

Se nos primeiros anos à frente da Presidência russa a palavra “democracia” aparecia múltiplas vezes em seus discursos, a partir de 2013, o termo praticamente sumiu de seu vocabulário e foi substituído pela expressão “aprovação popular” – e é nesse contexto que a cartilha populista entrou em cena. Populistas mundo afora têm afirmado agir de acordo com a “vontade do povo” para legitimar quaisquer atitudes, por mais nefastas que sejam, para que não tenham suas ações questionadas. Contudo, que vontade é essa, se o povo é plural?

De acordo com a atual Constituição russa, o país ainda é uma democracia, porém, muito diferente daquela defendida por Putin em seus primeiros anos de mandato. Putin envenenou, prendeu e silenciou opositores, passou a controlar a imprensa e investiu pesadamente em propaganda estatal para manter sua popularidade. Sua última grande investida, antes da invasão à Ucrânia, há uma semana, ocorreu em 2021, quando aprovou uma lei que o permitirá permanecer no poder até 2036. Em outras palavras, desmantelou a democracia de dentro para fora, sempre com a mesma justificativa: estava apenas realizando a vontade do povo.

As ações do Presidente russo deixam mais do que claro: Putin é contra a democracia. A integração ucraniana à OTAN ou a “desnazificação” do país foram apenas pretextos para invadir a Ucrânia e mostrar aos russos a fragilidade do sistema democrático. Por mais que a Ucrânia estivesse longe de ser uma democracia perfeita – com corrupção endêmica e ataques aos jornalistas – seu sistema eleitoral era praticamente livre. E para Putin, é crucial que a população russa não passe a questionar o próprio sistema eleitoral vigente ao se inspirar no sistema de um país vizinho que claramente permite a transição de poder. Para o Kremlin, ter uma democracia funcional por perto é perigoso, por isso, foi tão importante investir na invasão.

Não há dúvidas de que o objetivo final do populismo seja a perpetuação no poder. A erosão democrática levada a cabo na Rússia também tem ocorrido em outros lugares do mundo. As ações do governo russo foram mais um lembrete de como as democracias devem ser preservadas e protegidas. As instituições devem ser respeitadas e os cidadãos devem estar conscientes dos objetivos ocultos por trás dos discursos daqueles que tanto criticam o sistema vigente, por mais imperfeitos que sejam. A democracia jamais deve ser relativizada em nome de um projeto de poder ou ideologia. Infelizmente, é isso o que ocorreu na Rússia, e é isso o que pode ocorrer em outros lugares. Fiquemos atentos!

*Uriã Fancelli Baumgartner é autor do livro “Populismo e Negacionismo: o uso do negacionismo como ferramenta para a manutenção do poder populista”, prefaciado pelo embaixador Rubens Ricupero