14/09/2025 - 14:39
Condenação inédita de militares por golpe marca uma virada histórica de paradigma no Brasil, mas punição individual sem reforma institucional pode limitar o impacto futuro da decisão.Ao condenar Jair Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado, o Supremo Tribunal Federal (STF) rompeu com um paradigma histórico no Brasil.
Trata-se da primeira vez que um ex-presidente e militares de alta patente foram responsabilizados criminalmente por atentarem contra a democracia.
Isso porque, mesmo diante dos crimes cometidos na ditadura militar, a decisão é inédita. Ao contrário da experiência de países vizinhos, como Argentina e Chile, os tribunais brasileiros não julgaram os agentes do regime que vigorou no país entre 1964 e 1985. A Lei da Anistia de 1979, assinada pelo último dos presidentes do período ditatorial, perdoou os oficiais responsáveis pelo golpe de 1964.
“Dos 200 anos de independência, apenas um quinto desse período foi de limitada experiência democrática, sobretudo os últimos 40 anos em que o país deu passos significativos nessa direção”, observa Rodrigo Lentz, cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB).
“E na tradição autoritária, generais e coronéis davam golpes, tentavam golpes, e saiam impunes, sendo muitas vezes premiados”, recorda.
Mudança de paradigma
No turbulento período que antecedeu o regime, os autores de planos golpistas contra o governo de Juscelino Kubitschek também foram anistiados pelo então presidente.
“O julgamento definitivamente mostra que o Brasil agora tem capacidade de interromper e se contrapor a qualquer aventura golpista. Isso é fundamental”, ressalta o cientista político Sérgio Abranches. “É um fato perene, que será incorporado à vida institucional do país”.
A avaliação é compartilhada pelo historiador Lucas Pedretti, pesquisador da ditadura militar. No livro A transição inacabada (2024), ele examina as lacunas políticas e sociais do processo de redemocratização do país.
“Existe uma mudança radical de paradigma em relação ao final da ditadura militar”, constata. “Nos momentos de rupturas institucionais, o Brasil sempre optou pela via da conciliação, sob a falsa ideia de que o esquecimento e a impunidade levam à pacificação social”.
Cálculo institucional das Forças Armadas
Embora reconheçam o peso histórico da decisão do STF, os especialistas ouvidos pela DW apontam limites na responsabilização militar.
“Não se pode falar em uma ruptura da tradição institucional das Forças Armadas”, avalia Pedretti.
“Foi uma estratégia de entregar os anéis para não perder os dedos. As Forças Armadas perceberam que fazer algum tipo de proteção institucional aos militares envolvidos na conspiração traria prejuízos à corporação que elas talvez não fossem capazes de absorver”, comenta o historiador.
Desde o início do terceiro mandato, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem buscado uma relação de conciliação com as Forças Armadas (FA). A nomeação de José Múcio para chefiar o Ministério da Defesa foi interpretada como sinal dessa opção, já que ele é visto como um político capaz de dialogar com os comandos militares e de evitar atritos públicos.
A lógica adotada foi a de preservar a instituição, punindo apenas indivíduos envolvidos diretamente na conspiração golpista. Múcio, defendeu reiteradamente a importância de “separar o CPF” de quem cometeu crimes “do CNPJ” das Forças.
Essa ideia guiou a atuação das corporações militares ao longo do processo. Durante o encerramento do julgamento na Primeira Turma do STF, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, endossou a narrativa ao exaltar o apoio institucional dos comandantes militares e de Múcio.
“Não se confunde, nós não devemos confundir as Forças Armadas com integrantes que, eventualmente, se desvirtuaram. As Forças Armadas são um patrimônio nacional”, defendeu Moraes. Na peça de indiciamento, a Polícia Federal (PF) também afirmou que o golpe só não se consolidou por falta de apoio do Exército e da Aeronáutica.
Para Lucas Pedretti, a declaração do ministro evidencia uma estratégia bem-sucedida da corporação. “Eles conseguiram desvincular de maneira muito significativa o fato de que havia generais e militares de alta patente no coração de uma trama golpista, planejando assassinar o presidente da República, […] transformando em um problema individual”, observa.
70% dos réus são militares
Os oito réus julgados pelo STF nesta semana integram o chamado “núcleo crucial” da trama golpista nas investigações. A Procuradoria identificou quatro grupos, que somam 33 réus. Do total, 23 são militares – cerca de 70%.
Alguns, como o ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto e o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) representavam justamente a face institucional do golpe, conferindo legitimidade militar às conspirações, segundo a PGR.
“Não me parece ser coincidência”, comenta Pedretti. “Essa separação de CPF e CNPJ busca apresentar os agentes como ‘maçãs podres’. Mas estamos falando de Braga Netto e Augusto Heleno, sujeitos idolatrados no interior da corporação”.
Ao longo das investigações, houve episódios de resistência administrativa com o acesso a informações corporativas que pudessem expor a visão institucional sobre as práticas autoritárias e golpistas.
Em julho de 2023, por exemplo, o Exército informou à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro que não produziu relatórios de inteligência sobre um acampamento em frente ao quartel-general da corporação, em Brasília.
“De todo modo, ao final, prevaleceu a obediência ao poder civil. Nenhum motim, nenhuma carta de generais ou coronéis, nenhuma postagem de tutela. Para a história do país, esse pouco já é muito”, exalta Rodrigo Lentz, da UnB.
“As forças armadas, sobretudo o Exército, tinham interesses próprios em jogo: fortalecer a hierarquia e disciplina abaladas pela adesão de antigos comandantes ao jogo partidário e de militares ao governo. Afastar a política partidária se tornou uma condição para a manutenção desses pilares nos quartéis”.
Na avaliação do cientista político, a estratégia individualização teve objetivos políticos mais amplos do que a autopreservação institucional, ao proteger a imagem das FA junto às elites e à opinião pública.
“A cúpula militar conseguiu sinalizar lealdade às instituições democráticas sem abrir mão das autonomias históricas de que desfruta na política de defesa”, observa.
Formação militar resiste a mudanças
Lentz é autor do livro República de Segurança Nacional: militares e política no Brasil (2022), em que analisa o pensamento político oficial dos militares brasileiros a partir da Doutrina de Segurança Nacional, da Escola Superior de Guerra.
“Responsabilizar indivíduos, sem promover reformas na instituição, é fomentar novos militares golpistas”, afirma Lentz. “A política de defesa precisa ser democratizada, com garantia de participação social, para integrar as Forças Armadas nas mudanças da sociedade democrática”.
Um dos pontos mais sensíveis do debate é a formação militar. As academias e escolas de oficiais, diz ele, continuam transmitindo uma visão de mundo que projeta as Forças Armadas como guardiãs da nação, moralmente superiores ao mundo civil.
Propostas de mudanças curriculares – como incluir disciplinas sobre direitos humanos, democracia ou maior participação de civis no debate sobre defesa – costumam enfrentar forte resistência.
Pedretti lembra que essa resistência é histórica. Desde a redemocratização, iniciativas para revisar programas de ensino militar foram recebidas como tentativas de enfraquecer a disciplina ou de politizar a corporação.
“Novos ‘Helenos’ e novos ‘Bragas Netto’ são produzidos nas Forças Armadas neste momento, e eles vão estar aí pelas próximas décadas”, alerta Pedretti, que reconhece o custo político alto de tais reformas. “Tocar nos currículos militares é tocar no coração da identidade das Forças Armadas”.
Controle civil sobre a atuação militar é possível?
Propostas que buscam abrir a formação militar a novos conteúdos e maior controle civil têm ganhado força no debate público. Entre elas, a realização de uma conferência nacional de defesa, como existe em outras áreas da gestão pública.
A ideia, defendida pelos especialistas, é romper com a lógica de que apenas generais e ministros decidem sobre os rumos da defesa nacional, criando espaços de diálogo entre governo, parlamento, academia e sociedade civil.
“A pergunta que devemos nos fazer é: o que são as Forças Armadas dignas desse nome para o século 21, à altura dos desafios da democracia e da sociedade no Brasil?”, conclui Pedretti.