25/09/2025 - 12:15
Proposta avançou no país, fazendo do Brasil a nação no mundo com maior número de cidades com o benefício. Governo federal busca ampliar ideia em nível nacional, mas ainda há dúvidas sobre viabilidade.Em junho de 2013, quando manifestações pediam passe livre no transporte público brasileiro, a proposta foi pouco levada em conta. Entretanto, com o passar dos anos, a gratuidade avançou no país de forma única no mundo, com o Brasil atingindo o posto de nação com maior número de cidades que não cobram pelo transporte. O movimento engloba pequenos e médios munícipios, e, agora, o governo federal busca ampliar a tarifa zero em nível nacional, enquanto o projeto enfrenta dúvidas sobre a viabilidade financeira em cidades maiores.
Atualmente, 136 munícipios brasileiros contam com transporte público gratuito todos os dias do ano, atendendo a mais de 8 milhões de pessoas. Cerca de 60% daquelas cidades que contam com a tarifa zero diária têm menos de 50 mil habitantes. Já as maiores, como São Paulo e Brasília, adotam a medida em domingos e feriados.
Segundo o último levantamento disponível sobre tarifa zero universal, o Brasil é o país com mais cidades oferecendo a gratuidade, seguido pelos Estados Unidos, com 69 cidades, Polônia, com 64, e França, com 43 municípios.
Em 2014, Maricá, no estado do Rio de Janeiro, que conta com cerca de 200 mil habitantes, foi pioneira entre as cidades de maior porte a adotar a ideia. O munícipio criou uma companhia pública para gerir o serviço, o que é raro no país, e passou a oferecer o serviço pela Empresa Pública de Transportes (EPT).
A medida chamou a atenção na época, mas uma característica única da cidade deixava clara a dificuldade de replicar a ideia no restante do país: o munícipio é o que mais recebe royalties de petróleo no Brasil. Com o oitavo maior Produto Interno Bruto (PIB) do país, o orçamento municipal comportou espaço para medidas que outros com menor arrecadação teriam dificuldade de reproduzir.
Período da pandemia foi momento-chave
Na pandemia, em um cenário de forte queda na demanda pelo transporte público, acompanhado por um aumento dos custos, especialmente dos combustíveis, a defasagem abriu espaço para “uma visão diferente”, aponta o diretor-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam. De acordo com estudo da NTU, 73% das iniciativas de tarifa zero no país vieram após o período.
O urbanista Roberto Andrés, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda que este momento foi chave para a mudança sobre a visão das operações do transporte no país. Entre subsidiar até metade dos custos do serviço e ainda seguir com uma tarifa alta ou zerar o preço das passagens, a ideia de gratuidade foi reforçada.
Mas os desafios são diferentes de acordo com a logística de cada lugar. Em municípios menores, o gasto com a operação de transporte tende a corresponder a uma fatia bem inferior do orçamento municipal do que nas cidades maiores, onde o sistema é mais complexo. No caso de São Paulo, a estimativa de gasto real por passageiro é de R$ 11,86, que hoje são subsidiados pela prefeitura, chegando à cobrança de R$ 5 por tarifa.
“Desigualdade marcada pelo transporte”
Diferente de lugares como Luxemburgo, país que adotou nacionalmente a tarifa zero em 2020, e Tallin, capital da Estônia que se destacou pela medida, há um componente de justiça social mais forte no caso brasileiro, aponta Wojciech Kębłowski, professor da Vrije Universiteit de Bruxelas. Pesquisador do tema em diversos países, ele lembra que a “desigualdade no Brasil é marcada pelo transporte”.
Em outras regiões, especialmente na Europa, a tarifa livre foi defendida mais como uma forma de reduzir o uso do carro, com benefícios para a mobilidade e o meio ambiente.
Kębłowski observa que as questões também são importantes no Brasil, mas avalia que o impacto na renda e na qualidade de vida de pessoas que optavam por fazer trajetos de formas alternativas para economizar são as grandes vantagens de medida no país. “É algo mais importante pelo aspecto social e econômico que propriamente pelo ecológico”, aponta.
A maior cidade a zerar a tarifa até o momento é Caucaia, com cerca de 380 mil habitantes no Ceará, onde a frequência nos transportes aumentou em quatro vezes após a medida, reforçando que “havia demanda reprimida” pelos serviços, destaca Christovam. Na cidade, a Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) local apontou avanço de 30% nas vendas do comércio.
Com a maior circulação, há ampliação de atividades em diversos estabelecimentos. Além disso, o dinheiro economizado das passagens acaba sendo reinvestindo na economia local. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o transporte é o segundo maior gasto das famílias do país, atrás da alimentação. Em abril de 2025, os brasileiros gastaram 20,7% de sua renda com transporte.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) comparou 57 cidades com tarifa zero com outras 2.731 que ainda cobram passagem. Nas cidades em que foi aplicada a gratuidade, houve aumento de 3,2% de empregos e crescimento de 7,5% no número de empresas.
Como financiar?
Recentemente, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ordenou estudos sobre a viabilidade de replicar a medida nacionalmente. Na visão do deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP), a medida “saiu do plano de um sonho impossível e passou a ser um plano concreto”. Um dos principais líderes da proposta na Câmara dos Deputados, ele afirma que a questão vem sendo avaliada, mas que o tema “deixou de ser um discurso de rua”.
Há ampla discussão sobre maneiras de financiar o projeto, mas muitas delas com difíceis repercussões políticas. “Estamos na elaboração, e ainda não é possível cravar como será. Tenho feito reuniões e nos movimentamos. Eventualmente, pode haver reações. É como no caso do imposto de renda, todos concordam que deve se isentar até os R$ 5 mil, resta saber de onde tirar o dinheiro”, afirma Tatto.
Há propostas de criação de um fundo a partir da aplicação de pedágios urbanos e cobrança pelo uso do espaço público pelos carros, levando em conta o tamanho dos veículos e uso de estacionamento. Com oneração direta ao contribuinte, as alternativas são vistas com ceticismo, ainda que contem com defesa teórica em razão de alguns impactos negativos causados pelo uso de automóveis.
Outra ideia é a de que a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) dos combustíveis poderia se destinar a custear a operação. Por sua vez, a medida eventualmente aumentaria o preço final ao consumidor, dificultando que ela venha a ser bem aceita. Neste cenário, avança a visão de que o governo federal deverá contribuir em algum fundo para financiar as medidas.
Uma proposta que vem se destacando, e é a base para projetos de algumas cidades de maior porte é a de que empresários contribuam com parte do custeio da operação. Neste cenário, em discussão em Belo Horizonte, Brasília, Florianópolis e Juiz de Fora, empresas com mais de dez funcionários fariam um aporte mensal por cada trabalhador, visando substituir os encargos atuais que as companhias fazem com o vale transporte.
Segundo Andrés, a medida em princípio gerou questionamentos dos empresários, mas vem sendo atualmente mais bem aceita após o aprofundamento das discussões. “Especialmente os comerciantes veem a proposta como positiva”, afirma. A ideia é inspirada na França, onde o setor empresarial contribui historicamente para a mobilidade urbana.
De acordo com o especialista, o modelo atual do pagamento do vale transporte apresenta uma série de problemas, e a medida ajudaria neste sentido. Um exemplo é o caso dos trabalhadores em regime de pessoa jurídica, que muitas vezes não têm o benefício e usam fundos próprios para ir trabalhar.
Na avaliação de Roberto Andrés, a prioridade em Brasília atualmente deveria ser a aprovação de um Marco Legal que tramita na Câmara dos Deputados sobre o tema. “Facilitaria e daria segurança jurídica aos munícipios seguirem com suas propostas”, avalia. Em Vargem Grande Paulista, que buscou um modelo de financiamento semelhante, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a medida inconstitucional.
De toda forma, a Wojciech Kębłowski, professor da Vrije Universiteit de Bruxelas vê o Brasil hoje como “uma grande exceção, saindo de uma fase de experimento para uma política estabelecida, incluindo uma diversidade entre regiões e riquezas das cidades” que aplicaram a medida. “O avanço no Brasil pode inspirar outras partes do mundo”, conclui.