No fim de 1903, um certo Kent começou a assinar misteriosos artigos no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em defesa da compra de um território longínquo e desconhecido por grande parte da elite da capital. O Acre, no extremo Oeste brasileiro, havia sido adquirido da Bolívia pela espantosa cifra de 2 milhões de libras esterlinas, após a assinatura do Tratado de Petrópolis. O responsável pela decisão foi o chanceler José Maria da Silva Paranhos Júnior, que entrou para a história com o título de Barão do Rio Branco e como símbolo da boa diplomacia brasileira. O Barão, porém, era alvo de ataques impiedosos na imprensa fluminense, em especial no Correio da Manhã. Isso porque, além da fortuna paga aos bolivianos, o governo brasileiro se comprometera a construir a ferrovia Madeira-Mamoré, que integraria as economias do Brasil e da Bolívia. Por tudo isso, o Barão era acusado do crime de lesa-pátria. Os jornalistas do Correio, por sua vez, diziam que o tratado era uma ?mancha negra? na história do País e argumentavam que a ferrovia cairia no abandono ? neste segundo ponto, estavam certos, pois a Madeira-Mamoré ficou conhecida como ?ferrovia do diabo? e nela morreram 6 mil operários. Tempos depois, descobriu-se que Kent era ninguém menos que o próprio Barão do Rio Branco, usando a pena em defesa dos atos da chancelaria. ?O Acre até pouco tempo era a região mais maravilhosamente rica da América do Sul?, escreveu o Barão, num dos artigos. ?Aquele solo fertilíssimo foram cidadãos brasileiros que o trabalharam?.

Um século e três anos depois desse embate jornalístico, Evo Morales, o troglodita boliviano que se apossou das refinarias da Petrobras, decidiu atropelar a própria história e desferir mais um ataque ao Brasil. Num discurso na Cúpula América Latina-União Européia, em Viena, na Áustria, Morales disse que o ?Acre foi trocado por um cavalo?. Depois, afirmou que a Petrobras estaria agindo ilegalmente em seu país e contrabandeando gás. Portanto, não haveria razão para indenizar a estatal brasileira, que já investiu mais de US$ 1 bilhão na Bolívia. Criticado pela postura débil diante dos bolivianos, o chanceler Celso Amorim finalmente reagiu e disse que a palavra ?indignação? era a que a melhor expressava o sentimento brasileiro. Pela primeira vez, ele sinalizou que o País poderá retirar seu embaixador de La Paz.

De qualquer forma, para que se tenha noção do erro histórico de Morales, basta dizer que, em 1898, o governo brasileiro refinanciou a dívida externa com um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas ? o valor pago à Bolívia em 1903 representava 20% do montante. Mas por que, afinal, o Barão do Rio Branco decidiu empenhar tanto dinheiro num território tão remoto? O fato é que o Acre foi colonizado quase que exclusivamente por brasileiros, especialmente cearenses, a partir da segunda metade do século XIX. Fugindo da seca, eles desceram os rios Purus e Juruá em busca das riquezas da borracha. E embora o Acre pertencesse à Bolívia, por uma dessas arbitrariedades da partilha sul-americana entre Portugal e Espanha, os bolivianos estavam apartados de seu território pela cordilheira dos Andes. Os brasileiros, por sua vez, eram naturalmente atraídos para a região pelas águas navegáveis da Amazônia. Na virada do século, revoltados com impostos cobrados pelos bolivianos sobre a borracha, que representava metade da receita exportadora do Brasil, seringueiros e seringalistas da região participaram de duas revoluções: a de Luiz Galvez, que chegou até a criar o Estado Independente do Acre, e a de Plácido de Castro, um militar gaúcho que migrou para a Amazônia.

O mais grave é que, naqueles tempos conturbados, o governo de La Paz havia cogitado entregar a exploração de todo o Acre, por 300 mil libras esterlinas, ao chamado Bolivian Syndicate. Seria uma sociedade de economia mista formada em 1901 por capitais ingleses, alemães, belgas e franceses, que operaria como as empresas colonialistas da Índia e da África do Sul. Além disso, o governo dos Estados Unidos já enviado vários navios de grande porte para a região com um interesse claro: apropriar a riqueza da borracha que daria suporte à nascente indústria automobilística. Foi nesse contexto que o Barão do Rio Branco decidiu intervir. Ao assinar o Tratado de Petrópolis, o chanceler Paranhos conseguiu evitar uma guerra entre Brasil e Bolívia. Hoje, ao estuprar a própria história, Morales deixa claro que, depois de assaltar a Petrobras, ele talvez esteja disposto a indenizá-la com um simples cavalo. Ou uma lhama talvez.