A esquerda nunca foi tão forte na América do Sul. Ocupa os governos do Uruguai, Argentina, Brasil e Venezuela. Estão eleitos, à espera da posse, presidentes de esquerda na Bolívia e no Chile. Estima-se que líderes de esquerda serão eleitos no Peru e no Equador tão logo haja eleições. Ao mesmo tempo, as idéias de esquerda nunca foram tão desimportantes no continente. Políticas quase neoliberais dominam as economias de Brasil, Chile e Uruguai. O coronel Hugo Chávez fala como radical, mas não faz na Venezuela nada que ofenda a lógica capitalista, enquanto Néstor Kirchner, na Argentina, tem como seu grande trunfo o crescimento de 8% ao ano da economia de mercado. Nenhum dos presidentes de esquerda pode ser comparado a revolucionários como o argentino Ernesto Che Guevara ou o chileno Salvador Allende. Que paradoxo é esse? Assim como o progresso freqüentemente costuma iludir os sul americanos, também a transformação radical prometida pela esquerda parece ter chegado ao continente já gasta.

A exposição mais eloqüente desse dilema pôde ser vista na semana passada, com a eleição de Michele Bachelet à presidência do Chile. Médica, militante socialista desde a juventude, ela foi brutalmente torturada pela ditadura do general Augusto Pinochet, que matou seu pai na prisão. Com esse currículo, Bachelet venceu a eleição à frente de uma coalisão que governa o Chile há 16 anos ? e transformou o País no exemplo mais vistoso de sucesso das políticas econômicas neoliberais, herdadas da ditadura militar. Aos 54 anos, a presidente tem pela frente a tarefa de manter na rota uma economia que cresceu 6% em 2005, abriu seus portos e reduziu a pobreza de 40% para 18% da população do país. Enquanto o presidente Allende foi derrubado e morto em 11 de setembro de 1973 porque sonhava implantar no Chile uma economia planejada, nos moldes soviéticos, cabe à Bachelet, sua herdeira histórica, aprofundar um modelo que transforma o Chile na economia capitalista mais bem sucedida do continente. ?Quando Allende foi eleito, há 35 anos, os mercados desabaram e as pessoas queriam sair do país?, diz o acadêmico chileno Alberto Hurtado. ?Agora, embora Bachelet seja médica e socialista como Allende, ninguém cogita uma fuga e a Bolsa subiu.?

Outro personagem dessa transformação da esquerda é Evo Morales, que assume a presidência da Bolívia neste domingo 22. Radical, indígena, representante dos plantadores legais de coca, ele foi eleito com um discurso virulentamente anti-americano e a promessa de nacionalizar as reservas de petróleo do seu país. O petróleo e o gás boliviano pertencem às empresas, enquanto no Brasil as companhias detêm apenas concessões. Na semana passada, depois de um giro de uma semana por oito países, Morales desembarcou em Brasília bem mais manso. Disse que quer dialogar com os americanos, reconheceu a importância de investidores externos no seu país (só a Petrobras responde por 20% do PIB boliviano) e aceitou comprar as refinarias brasileiras em seu território, em vez de simplesmente expropriá-las, como havia dito em campanha. DINHEIRO apurou que o ministro Celso Amorim avisou aos diplomatas bolivianos que o Brasil aceita vender, mas não ser expropriado. A questão agora é acertar o preço e a forma de pagamento. Embora tenha formado com Chávez uma ?aliança anti-imperialista?, o presidente eleito está descobrindo que é mais fácil livrar-se da gravata e apresentar-se em mangas de camisa em cerimônias oficiais do que sacudir a pobreza que oprime a Bolívia há 500 anos. ?A Bolívia precisa dos investidores externos?, diz o professor Moniz Bandeira, autor do recém-lançado Formação do Império Americano. ?Não pode dar-se ao luxo de brigar com americanos e brasileiros ao mesmo tempo.” Houve um tempo em que Guevara, herói da revolução cubana, afirmava que ?são moderados todos os que têm medo ou que pensam trair o povo de alguma forma?. Ele morreu em 1968. Se estivesse vivo, não reconheceria seus companheiros de esquerda. E a esquerda não o reconheceria.