03/03/2004 - 7:00
Texas, 1997. Antes de ser presidente dos Estados Unidos, George W. Bush governava o Estado. Sem explicações, ele suspende a licitação para explorar a loteria local e o contrato é entregue à Gtech, líder mundial no negócio de jogos eletrônicos. Mais tarde, descobre-se que o lobista da Gtech, Ben Barnes, havia sido responsável pela convocação de Bush, nos anos 60, para se alistar na Força Aérea Texana, o que o dispensou de ir ao Vietnã. Pelos serviços prestados à Gtech, Barnes embolsou US$ 23 milhões. Rhode Island, 1998. O presidente e fundador da Gtech, Guy Snowden, renuncia. A Justiça prova que ele havia tentado subornar o bilionário britânico Richard Branson, dono da Virgin, para afastá-lo do mercado inglês de loterias ? em 1992, Snowden já havia investido US$ 100 mil na empresa do filho de uma autoridade irlandesa, semanas antes de vencer um contrato. Brasília, 2004. A Gtech está no centro de um novo terremoto. Em notas oficiais, a empresa admite que fez negócios com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e que seus executivos tiveram encontros com Waldomiro Diniz, ex-assessor da Casa Civil, em 2003, durante o governo Lula. Depois disso, a Gtech conseguiu renovar por 25 meses, sem licitação, um contrato de quase R$ 1 bilhão com a Caixa Econômica Federal para processar o jogo em cada uma das 9,5 mil loterias brasileiras.
Essas três histórias revelam o perfil de uma empresa quase monopolista que há anos prospera no Brasil, agindo na sombra. Sediada no moderno edifício paulistano da Bolsa de Imóveis, conhecido como ?Robocop?, a Gtech comporta-se como uma sociedade secreta. Seu telefone não consta do discreto website corporativo da companhia nem do serviço de informações da Telefônica. Seus assessores evitam revelar até o endereço da empresa. E, todas as vezes em que foi procurado pela DINHEIRO pelo celular, o presidente da filial da Gtech, Fernando Cardoso, disse estar em reunião.
Apesar de todo o mistério, o Brasil se transformou no maior mercado internacional da Gtech, que chegou ao País em 1993. Das receitas globais de US$ 1,5 bilhão, 15% vêm do Brasil. Com ações negociadas na Bolsa de Nova York, a multinacional, criada por três ex-executivos da IBM, tem um valor próximo a US$ 3,5 bilhões. E, além da Caixa, os principais contratos no País envolvem loterias estaduais, como as de Minas Gerais e Santa Catarina. São raros os casos em que não há algum tipo de confusão. Em Minas, uma dívida de R$ 29 milhões foi perdoada no governo Itamar Franco. ?É impressionante a desenvoltura com que a Gtech se expandiu no Brasil?, espanta-se o procurador Rodrigo Albuquerque, da Promotoria de Combate ao Crime Organizado. ?Vamos fazer uma devassa em todos os atos e contratos da empresa.?
Depois do escândalo Waldomiro, a Gtech também não terá como escapar a um pente fino federal. O contrato renovado com a Caixa já está sendo investigado pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas e pela Controladoria Geral da União. Os procuradores suspeitam das relações de Waldomiro com o atual diretor de loterias da Caixa, Paulo Campos. Ambos já haviam trabalhado juntos no governo petista de Cristovam Buarque, em Brasília. No TCU, o ministro Ubiratan Aguiar promete iniciar na segunda-feira 1 uma devassa na empresa. Uma auditoria concluída em 2003 já havia apontado indícios de superfaturamento de R$ 90 milhões num contrato fechado com a Caixa em 1997. Na defensiva, a diração do banco alega que, na última renovação contratual, obteve um desconto de 15%, equivalente a R$ 112 milhões.
Por trás de toda a polêmica que envolve a Gtech, há um complicador técnico, que acaba ?amarrando? os clientes aos interesses da empresa. Depois do contrato inicial, a multinacional sai em vantagem nas renovações, uma vez que suas máquinas já estão instaladas. No caso da Caixa, uma das alegações para renovar o contrato por 25 meses foi o fato de que as loterias não poderiam ter seus serviços interrompidos. Esse argumento, porém, é contestado pelo ex-presidente da Caixa, Waldery Albuquerque. ?Uma renovação por 90 dias seria suficiente?, avalia Waldery. Entre o corpo técnico da Caixa, há até um movimento para que o banco desenvolva terminais para as casas lotéricas, mas a Gtech tem obtido liminares. ?A empresa usa a Justiça para adiar a independência da Caixa?, dispara o procurador Lucas Rocha.
No seu histórico, a multinacional americana já se envolveu em muitas outras encrencas, como compras de juízes no Texas e na Califórnia. Em razão disso, seu diretor de vendas, David Smith, chegou a ser condenado pela Justiça americana. Posteriormente, a empresa trocou seus executivos, contratou ex-investigadores do FBI para Conselho e hoje jura seguir um código interno de conduta, que inibe qualquer prática de corrupção. No entanto, depois do escândalo Waldomiro/Cachoeira, a Gtech e sua ética, mais uma vez, estão em xeque. ?Teremos de fazer uma CPI só para investigar a Gtech?, avisa o senador Demóstenes Torres (PFL-GO).