05/06/2003 - 7:00
Uma cena ajuda a definir a lenda dos 3,8 quilômetros do circuito de rua de Mônaco, a mais romântica das provas de Fórmula 1. Em 1988, Ayrton Senna corria pela McLaren. A doze voltas do final, o carro quebrou, com o motor a cuspir fogo ? o bólido de Senna parou na curva Portier, enfrentada a uma velocidade de 40 km/h. O piloto, em busca do segundo título mundial e da primeira de suas seis vitórias em Montecarlo, deixou o cockpit, tirou o capacete e seguiu para casa, a 200 metros de distância. Entrou no edifício da avenida Princesa Grace, não dirigiu palavra à empregada doméstica que ali trabalhava e foi para o quarto dormir. Pela televisão, um pouco mais tarde, soube que o arquiinimigo Alain Prost vencera a prova. A insólita incursão doméstica de Senna ajuda a entender a vida de glamour que gira ao redor da pista. Em nenhum outro Grande Prêmio acompanha-se tão intensamente o casamento do rico circo da F1 com o cotidiano dos milionários. No ano seguinte, mecânicos se espantaram novamente com o comportamento de Senna ? antes da competição, na manhã de domingo, o brasileiro deu uma volta completa, a pé. Passava as mãos no chão do asfalto monegasco, sentia as saliências, as apalpava. Venceu a prova.
PIB mundial. A versão 2003 do Grande Prêmio de Mônaco, no domingo, 1º de junho, ilumina pela 61ª vez um paraíso para os grandes pilotos e também para boa parcela do PIB mundial. ?Do ponto de vista mental é a mais difícil de todas as provas?, diz Michael Schumacher. ?É como se estivéssemos correndo nas ruas de uma cidade, no trânsito cotidiano, e de fato é o que acontece.? O piloto francês Olivier Panis costuma dizer que há uma dificuldade adicional: manter a atenção tendo diante da viseira o belíssimo porto e o luxo dos edifícios e das lojas. É como se o traçado fizesse um passeio pelo mundo do jet-set internacional.
A reboque do lendário cassino, Mônaco atraiu os novos ricos
porque é um paraíso fiscal. Como ganharam muito dinheiro sem pagar impostos, rapidamente tornaram-se ainda mais endinheirados ? e fizeram parceria com os milionários históricos. O paraíso fiscal, é claro, gerou sempre muita confusão à beira da pista. O tenor Luciano Pavarotti desafinou às custas de Montecarlo. A Justiça italiana o acusa de ter sonegado algo como US$ 6 milhões, entre 1989 e 1991. Pavarotti alegou residir no principado desde 1983. O governo italiano pensa de modo diferente: como o tenor passava mais da metade do ano em suas propriedades na Itália, precisaria pagar impostos em seu próprio país.
Há, no pequeno território, 50 bancos em operação ? um para cada 600 habitantes. É uma farra financeira. Entre as leis de Mônaco nenhuma pune delitos fiscais. É um comportamento que incomoda a França. Em 1963, Charles de Gaulle conseguiu que os residentes franceses pagassem impostos depois que ameaçou cortar o fornecimento de eletricidade ao principado.
Sombra. Os ricos chiaram, mas tiveram que seguir a decisão do general. Prosseguiram, no entanto, trilhando os desvãos da legislação de Mônaco para cumprir a risca uma frase cunhada pelo escritor americano Scott Fitzgerald nos anos 20, quando vivia na Riviera Francesa: ?Os climas ensolarados como os de Montecarlo são para pessoas que desejam viver na sombra?. Uma vez por ano, durante o GP, eles saem à varanda num desfile de riqueza e boatos. Mônaco é o eterno palco das celebridades ? tornou-se lenda depois que Grace Kelly enamorou-se do príncipe Rainier, em 1955, nas filmagens de Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock. A família Grimaldi é desde então o cipoal de notícias para as revistas de fofocas. Recentemente, Rainier processou uma delas porque a publicação teria assegurado que o zeloso pai expulsara Stephanie do palácio. O motivo: depois do romance com o guarda-costas, ela trocara beijos com o jardineiro. Expulsa de casa, Stephanie teria ido morar num hotel de propriedade do piloto inglês David Coulthard. São situações possíveis apenas em Mônaco, o único lugar do planeta onde os guardas de rua ? apenas 300 ? vestem luvas brancas.
Uma noite no Le Louis XV |
São 8 da noite no salão em estilo Versailles do restaurante Louis XV, coração do Hotel de Paris, na Place du Casino de Mônaco. O silêncio incomoda, é quase ruidoso. Até que Pierre Stéphane (função, chefe da ronda) põe para andar o carrinho com 20 tipos de pães. O ranger das rodinhas, no veículo que trilha seu caminho sempre no sentido horário, inaugura o balé. O sommelier, como um maestro a reger a orquestra, ergue o braço esquerdo, prova dois dedos de champanhe Moët-Chandon Grand Crue, acena com a cabeça e sorri. Para usar uma expressão comum ao que acontece no asfalto, foi dada a largada. A partir daquele momento, 50 felizardos, e apenas 50 por noite, saberão o que é um restaurante anotado com três estrelas no Guia Michelin. ?Uma sala de restaurante é um teatro, é preciso montar a decoração a cada noite?, diz Alain Ducasse, o único chef do planeta a ostentar seis estrelas ? no Plaza Athénée, em Paris, ele exibe a outra trinca. Como todo bom teatro, é imperativo uma visita aos bastidores. Ali, o homem que de fato comanda os pratos no Louis XV, Franck Cerutti, de 42 anos, ar de surfista, falante e repleto de gestos, sabe ser o piloto de um tremendo negócio. A cozinha tem mil metros quadrados. O equipamento é de ponta. Quando Cerutti entra no prédio, às 9 da manhã, depois de descer de sua Toyota 4×4, os 25 funcionários já estão de prontidão. O chef se aboleta numa sala de vidro, espécie de aquário entre fornos, lê os jornais e parte para a boca do fogão. ?Faço tudo para evitar uma linha de montagem ao estilo fordiano?, diz. ?Aqui, todos sabem fazer de tudo, e cada prato é verificado por mim quando está pronto para entrar no salão.? É o desfecho de um dia que começa sempre do mesmo modo para Cerutti ? nos corredores da feira de Nice, onde ele mesmo faz as compras de legumes e condimentos. ?Mas não sou xiita?, afirma. ?Já fui com meus filhos ao McDonald?s?. A comida, sim, é ortodoxa. Ducasse e Cerutti a definem como uma ?viagem pelo Mediterrâneo?, com trufas, azeite de oliva, alcachofra e delicadas lagostas. Na carta de vinhos, os olhos se espantam com os 12.768 euros pela garrafa do Pétrus-Pomerol de 1945. A boa notícia: na hora do almoço, há um menu a 90 euros. À noite, ele vai a 180 euros. É indício de que alguns mortais também têm direito ao céu. |