DINHEIRO ? A ofensiva dos Estados Unidos para identificar os recursos do terrorismo é um indicativo de que os xerifes contra o dinheiro sujo venceram a luta?
ADRIENNE SENNA ?
Ainda não. Vamos ter de levar a batalha mais a sério. O processo de lavagem é transnacional, utiliza mais de um país para lavar os recursos, até mesmo para dificultar a identificação e a investigação por parte das autoridades. O movimento que é percebido no mundo é um enfoque para a adoção por parte de todos os países de medidas semelhantes no combate à lavagem de dinheiro, uma harmonização das legislações. O Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), criado pelo G-7, elaborou 40 recomendações internacionais e orientou o cumprimento de pelo menos 28 para o combate eficaz à lavagem de dinheiro. Apenas dez países cumprem todas as recomendações, e entre eles o Brasil. Os Estados Unidos só cumpriam 17 e agora as medidas anunciadas pelo presidente George W. Bush vão na direção de chegar ao ponto ideal de política de combate à lavagem de dinheiro.

DINHEIRO ? Por que países como Estados Unidos, Canadá e Japão ainda não têm uma legislação mais rígida?
ADRIENNE ?
Há pressões de setores econômicos para não legislar. Havia uma certa conivência porque o Primeiro Mundo tinha benefícios com os paraísos fiscais. A grande maioria desses locais pertence a uma bandeira dos países do Primeiro Mundo, isto é, estão em um bloco regional. Grande número é, por exemplo, de bandeira inglesa. A sorte do Brasil é que quando elaboramos a legislação para tratar do assunto, em 1996, todas as recomendações internacionais foram contempladas. Em 1999 a lei foi totalmente regulamentada.

DINHEIRO ? Brasileiros e empresas brasileiras que têm dinheiro em paraíso fiscal têm motivos para
estar com medo?
ADRIENNE ?
Têm. Nem tanto pela ação da jurisdição brasileira, mas pela internacional. Os paraísos fiscais atraem dois tipos de crime: a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal. Não é a mesma coisa, mas a forma de esconder o dinheiro é a mesma. E a maneira de combater também é a mesma. De repente, um sonegador, que no Brasil não é considerado crime grave, pode ter que dar explicações a outro governo. Há países que consideram a sonegação fiscal crime muito grave, como é o caso dos Estados Unidos. Todo mundo que tem dinheiro lavado em paraíso fiscal pode sofrer reveses e aí terá o trabalho de provar que o dinheiro não tem origem na corrupção, na droga
ou no financiamento do terrorismo.

DINHEIRO ? É de se esperar uma repatriação de dólares?
ADRIENNE ?
Seria prudente trazer o dinheiro que está em paraíso fiscal. Entre correr o risco de acertar a conta com o Fisco e ter o dinheiro bloqueado, é melhor pagar o imposto. Vai ter uma pressão internacional muito grande na identificação desses recursos. Eu teria medo. Agora, o dinheiro do crime, do contrabando e da corrupção, esse não vai voltar.

DINHEIRO ? Alguns analistas defendem anistia fiscal para os recursos de caixa dois em paraísos fiscais para incentivar a entrada de dólares. É uma proposta viável?
ADRIENNE ?
Um comportamento que sempre incentiva a sonegação em qualquer país do mundo é a expectativa de anistia futura. E a política do secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, é não privilegiar os maus pagadores. Eu tendo a concordar com essa postura. Se eu pago meus impostos em dia, por que não querer a mesma conduta de outros brasileiros? Quem tem dinheiro de caixa dois em paraíso fiscal, basta pagar o imposto para torná-lo legal.

DINHEIRO ? É possível quantificar o volume de dinheiro em paraísos fiscais?
ADRIENNE ?
Se fosse possível saber a quantidade seria possível saber onde ele está. O único cálculo sério para identificar a lavagem de dinheiro é o desenvolvido para o esquema da droga. Foi criada uma metodologia para identificar os ganhos da cadeia, desde o produtor até a venda na rua. São números usados pelo Fundo Monetário Internacional, que mostram que o movimento anual é entre US$ 500 bilhões e US$ 1 trilhão. É impossível calcular o dinheiro da corrupção e da fraude.

DINHEIRO ? Qual é o mecanismo mais usado pelos brasileiros para lavar dinheiro?
ADRIENNE ?
Historicamente o mais usado é a remessa de dinheiro para paraíso fiscal. Esse dinheiro sai pelas contas CC-5, por doleiro, pelas fronteiras como Uruguai e Paraguai. Até 1998 não era crime lavar dinheiro e os brasileiros agiam com muita desenvoltura. O padrão normal era tirar dinheiro do País. E aí tem o outro fluxo, que é o dinheiro sujo do mundo entrando no Brasil para ser lavado aqui. Quem quis lavar aqui tradicionalmente o fazia por meio dos bancos. Até 1990, tínhamos por exemplo os títulos ao portador, que eram pagos sem nenhuma identificação. Na CPI do PC Farias se
identificou muitos laranjas porque houve uma falha dos bancos na identificação dos clientes. Isso foi fechado em 1993, com uma
norma administrativa do Banco Central. O narcotráfico usa muito a compra de imóveis e a abertura de empresas de factoring e restaurantes. O céu é o limite.

DINHEIRO ? O terrorismo vai obrigar uma atuação mais forte do Primeiro Mundo?
ADRIENNE ?
Sim, vai reforçar a vontade de fechar as brechas. Esse movimento começou no início de 2000, quando vários países começaram a se adaptar às normas internacionais de combate à lavagem de dinheiro. Foi criado um programa de avaliação de países e territórios não-cooperantes e aqueles que tinham regra de sigilo, que não davam informação, como Ilhas Cayman, Bahamas, Panamá, entraram para uma lista negra. Eles foram pressionados a adotar as recomendações, caso contrário seriam aplicadas contra-medidas e poderiam até ser retirados do sistema financeiro internacional. A pressão surtiu efeito e vários países se mexeram para ter uma legislação cooperativa. Esse exercício vai ser retomado agora com muito mais força. No primeiro momento, ele foi muito técnico e deu bons resultados. Mas havia uma certa complacência por questões diplomáticas e o prazo de ajuste era muito longo.

DINHEIRO ? Pode-se dizer que as regras econômicas venceram o terrorismo?
ADRIENNE ?
Elas terão de vencer. Por enquanto, não venceram porque ainda tem muito dinheiro escondido. Uma ação para desvendar um esquema como esse não é imediata. As megaoperações de lavagem de dinheiro ligadas ao narcotráfico, por exemplo, levam de dois a três anos para serem desvendadas. É um quebra-cabeça que se junta peça por peça. Esse pessoal tem a melhor assessoria. No caso da operação Casa Blanca (narcotráfico no México e EUA) foi contratado um ex-aluno de Harvard para elaborar o esquema. Gastou-se mais de três anos para descobrir o esquema. Por isso é preciso controlar todos os setores econômicos. No Brasil, todos os setores passíveis de serem utilizados em um processo de lavagem estão obrigados a identificar o cliente, registrar a transação e comunicar a operação suspeita.

DINHEIRO ? E qual o efeito prático disso para o Brasil?
ADRIENNE ?
Vai ajudar a desvendar várias investigações. O que queremos é que outros países também façam o dever de casa porque é frustrante ter a investigação de um processo de lavagem e perder o rastro ao ver a saída do dinheiro para um paraíso fiscal.

DINHEIRO ? Acabou o tempo do dinheiro escondido?
ADRIENNE ?
Ainda não. Está em processo de extinção porque não existe mais lugar seguro para guardar dinheiro sujo. As pessoas colocavam dinheiro na Suíça, por exemplo, porque achavam que tinham proteção. As regras do país mudaram. O dinheiro do juiz Nicolau dos Santos foi bloqueado. O Montesinos (assessor do ex-presidente do Peru Alberto Fujimori), que tinha US$ 200 milhões lá, também teve o dinheiro bloqueado. A Suíça está fazendo um trabalho sensacional até para tirar essa pecha de paraíso de dinheiro sujo do mundo e virar modelo. No Brasil, ninguém traz dinheiro para ser lavado aqui porque desde 1998, com a lei da lavagem, o anonimato acabou. Tudo é registrado.

DINHEIRO ? Então não se lava dinheiro no Brasil?
ADRIENNE ?
Sempre tem jeito, mas ninguém de fora vai correr um risco desnecessário para lavar dinheiro aqui. Pode até trazer, mas o risco é alto. O que temos no Brasil é pessoas à margem do sistema, como os doleiros, mas cada vez mais essas operações ficam arriscadas. Já existe uma atuação forte da Polícia Federal e do Banco Central nas casas de câmbio.

DINHEIRO ? Há alguma megaoperação em curso para investigar dinheiro do terrorismo no Brasil?
ADRIENNE ?
Não. Não temos informação de dinheiro sujo do terrorismo aqui. O Brasil não foi envolvido no esquema. Os Estados Unidos não pediram nenhuma informação desse tipo ao Brasil. Eles solicitaram nossa colaboração para uma reunião que vai acontecer em Washington, até o final do ano, para discutir medidas de combate à lavagem em outras partes do mundo. Pediram nossa ajuda porque temos know-how.

DINHEIRO ? Então, não existem rastros do financiamento do terrorismo no Brasil com dinheiro sujo?
ADRIENNE ?
Apuramos as suspeitas, mas nada foi encontrado. Estamos vigilantes a tudo. Toda a movimentação que chama a atenção sempre é checada, até mesmo dinheiro que vem de fora para organizações não-governamentais. A rigor não teria entrado dinheiro no Brasil sem uma justificativa forte que não tivesse sido verificada. Como a remessa de dinheiro passa pelo Banco Central e obrigatoriamente é registrada, a gente pode dizer que não entrou no País dinheiro ligado ao terrorista Osama Bin Laden.

DINHEIRO ? O Brasil tem regras rígidas no combate à lavagem de dinheiro, mas ainda assim existem brechas…
ADRIENNE ?
No momento, a legislação não precisa ser alterada. O que é preciso é sensibilizar alguns setores econômicos que ainda não estão atendendo as normas em vigor como deveriam. Um exemplo é o mercado de seguros, que até hoje não comunicou nenhuma operação suspeita à Coafi. As empresas são regulamentadas pela Superintendência de Seguros Privados (ligada ao Ministério da Fazenda). Ou ela não está conseguindo apertar o pessoal ou está ignorando a lei. A outra alternativa é que só existe anjo nesse mercado. Outro setor é o de objetos de arte, que não tem nenhum órgão fiscalizador. Estamos vendo se chegamos a esse pessoal através dos leiloeiros.

DINHEIRO ? Onde vocês identificaram o maior número de operações para esconder dinheiro sujo?
ADRIENNE ?
Nos bingos e nos bancos. São os setores que mais enviam informações para serem apuradas. No ano passado, por exemplo, de um total de 6.654 comunicados de operações
suspeitas, 5.720 eram deles. As peças desse quebra-cabeça
estão sendo montadas.