Escravizada e perseguida pela Inquisição, ela teve sua história recuperada nas últimas décadas e se tornou símbolo da luta LGBTQIA+ no Brasil. Mais de 400 anos depois, Carnaval do Rio homenageia Xica Manicongo.”Eu sou a bicha, invertida e vulgar, a voz que calou o cis tema, a bruxa do conservador” é um trecho do samba-enredo que a escola Paraíso do Tuiuti vai levar para o Sambódromo do Rio de Janeiro na noite de terça-feira (04/03). Com o título Quem tem medo de Xica Manicongo?, a agremiação decidiu homenagear uma personagem dos idos de 1500, considerada a primeira travesti do país.

E que pagou um preço muito caro por isso: foi denunciada ao famigerado Tribunal do Santo Ofício, representado por um padre-visitador no país. Para não ser queimada em praça pública, acabou se resignando a “abrir mão de se vestir como lhe convinha”, como descreve num artigo a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).

Xica era Francisco Manicongo, ou Francisco de Congo. Nasceu no antigo Reino do Congo e foi trazida para o Brasil como escravizada na segunda metade do século 16. Trabalhava para um sapateiro de Salvador. Na primeira vez que um religioso da Santa Inquisição foi enviado ao Brasil colonial, em 1591, foi denunciada pelo português Matias Moreira. Entre seus “crimes” estavam a orientação homossexual e a maneira de se vestir.

De acordo com as pesquisas do antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundador do Grupo Gay da Bahia, da denúncia constava que Manicongo “tem fama, entre os negros desta cidade, que é sodomita”. Moreira declarou ainda tê-la visto “com um pano cingido, assim como na sua terra do Congo trazem os sodomitas”, e que este hábito seria a prática adotada por “negros sodomitas que no pecado nefando servem de mulheres pacientes”. O denunciante teria repreendido Xica por não usar “o vestido de homem”.

Identidade de gênero e os limites da história documentada

Muito mais não se sabe sobre a biografia de Xica Manicongo. Nos anos 1990, a personagem foi descoberta por Mott a partir de pesquisas nos registros da Inquisição no Brasil. Até então, contudo, ela era apresentada por sua identidade masculina, Francisco Manicongo.

“Ultimamente dezenas de inverdades têm sido ditas a respeito dela, que não se sustentam. Ela não foi presa nem queimada”, esclarece o antropólogo, lembrando que o que se sabe a respeito de Manicongo se restringe às quatro linhas dos arquivos da Inquisição.

“Desde 1998, eu chamo a atenção sobre Francisco Manicongo, como consta nos documentos, por ter sido o primeiro travesti. Na época se usava o masculino para se referir às travestis”, comenta Mott.

No fim da década de 2000, Manicongo passou a ser representada pela identidade de gênero que lhe parecia mais adequada, graças ao trabalho da ativista travesti Marjorie Marchi (1974-2016). Presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro, ela compreendeu a importância histórica e simbólica desse episódio e tomou a liberdade de rebatizar a personagem como Xica Manicongo.

“Xica era lembrada através do seu nome morto [Francisco] e até apontada como homem, todavia sua história foi resgatada levando em consideração a intersecção com gênero e sexualidade”, contextualiza a geógrafa e ativista Sayonara Nogueira, presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação. “Ela se recusava a usar indumentárias masculinas da época e acabou sendo acusada de sodomia e de fazer parte de uma quadrilha de feiticeiros.”

“Para fugir da sentença de morte, precisou negar sua identidade e adotar o estilo de vida masculino, além de ser forçada a conviver com o desprezo e a violência da sociedade da época. Durante séculos foi registrada como homossexual por historiadores, até sua identidade feminina ser resgatada”, completa Nogueira.

O antropólogo Mott diz que apoia essa ideia de identificar Manicongo como Xica, lembrando que “o movimento social das trans […] incorporou [a personagem] como uma travesti ancestral e afirmativa”.

“Mas não é preciso inventar fake news”, comenta ele, sobre histórias segundo as quais, por exemplo, Xica Manicongo teria sido morta na fogueira. “Os documentos bastam. Eu apoio a transformação de Francisco Manicongo em Xica Manicongo como ícone do movimento da população transgênero, só que dentro dos limites impostos pela documentação manuscrita.”

Criando uma imagem de Xica

Em 2018 a estilista Isa Isaac Silva inspirou-se na personagem para criar uma coleção. Ela diz que recuperar essa história tem “uma importância absurda” e que tal perseguição foi algo “muito dolorido e desumano”: “Pessoas trans sempre existiram e sempre vão existir. É viver e resistir.”

Em 2024, Mott apresentou Xica como “a primeira pessoa trans registrada no Brasil” e promoveu uma exposição na UFBA com o que chamou de “o retrato falado de Xica Manicongo”, uma reinterpretação artística de como seria a travesti, feita pelo artista Miguel Galindo sob encomenda do Grupo Gay da Bahia.

A letra do samba-enredo da Paraíso do Tuiuti, escrita por Claudio Russo e Gustavo Clarão, traz outros elementos do universo LGBTQIA+. Usa termos como pajubá, originalmente um criptoleto usado por grupos de africanos escravizados e que, como língua de resistência, hoje é apropriado principalmente pela população travesti e transgênero.

O samba lembra a violência da transfobia: segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 122 transexuais e travestis foram assassinados no território nacional em 2024, o que coloca o país como o que mais mata trans, pelo 16º ano consecutivo. “Eu, travesti, estou no cruzo da esquina pra enfrentar a chacina”, diz a letra. “Que o Brasil da Terra plana tenha consciência humana”.

Em março de 2024, o artista visual e designer Antonio Vieira produziu uma imagem de Xica Manicongo para a escola de samba. Como havia poucas informações a respeito da personagem, ele partiu de diretrizes dadas pela agremiação. “A ideia era não tentar representar o rosto ou a forma, ele [o carnavalesco] gostaria que fosse um movimento.”

Em 2025, como em 1500

Diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+, o pedagogo Toni Reis comenta que, dentro da cultura nacional, receber homenagem em desfile de escola de samba tem um significado especial. “Essa visibilidade é importante, neste caso principalmente para as pessoas trans. A comunidade [LBTQIA+] sempre sofreu repressão, sempre foi tratada como praticante de pecado, de crime, como doente. Trazer essas histórias mostra que temos história. E a Xica sobreviveu, mesmo que todo mundo fosse contra ela. É para ter muito orgulho.”

Para a geógrafa Nogueira, trazer à tona histórias como a de Xica Manicongo é importante “pelo fato de se tornarem símbolos de luta e resistência para nossa comunidade”, “além de sensibilizar e trazer visibilidade às pessoas trans na atualidade”. “Infelizmente, a extrema direita vem nos transformando nas novas marginais do século 21. Existe uma perseguição diária aos nossos corpos e direitos, como uma nova Inquisição. Ainda nos são negados direitos básicos. Portanto, a história de Xica Manicongo escancara toda a violência a que somos submetidas no decorrer do tempo, até a atualidade.”

“Xica Manicongo sofreu um apagamento histórico por séculos de pesquisadores, e a insurgência de sua identidade travesti fortalece a luta trans e travesti num país que diariamente vilipendia nossas existências”, analisa Nogueira. “Sua história evidencia hoje os desafios que enfrentamos, principalmente quando fazemos o recorte racial, sendo que as travestis pretas são as que mais sofrem violações de direitos humanos e se mostram em elevado número nos anuários de assassinatos de pessoas trans no mundo todo.”