17/11/2000 - 8:00
A história da privatização do Banespa pode ser dividida em dois grandes capítulos. O primeiro trata da maior batalha já travada pelo controle de uma instituição financeira no Brasil, alimentada por 62 liminares que tentaram barrar o leilão. O segundo, mais intricado ainda, terá início quando o novo controlador colocar seus pés na sede do banco, um imponente edifício localizado no centro de São Paulo. Ali, terá que injetar em uma estrutura tipicamente estatal conceitos como eficiência, competitividade, satisfação de clientes, entre outros.
O tamanho desses desafios fez com que alguns pretendentes ficassem no meio do caminho. Outros, porém, não pouparam recursos para levar o Banespa. O Bradesco, empenhado em preservar sua liderança, contratou a consultoria da Goldman Sachs ? especialista em comprar e recuperar créditos podres ? para saber como retomar parte da montanha de empréstimos não pagos, já lançados como prejuízos no balanço. O Unibanco montou um time de mais de 50 executivos, analistas e advogados para estudar as contas do banco. Mesmo quem se retirou antes da disputa, gastou um dinheirão. O Citibank trouxe técnicos dos Estados Unidos para fazer avaliações, investiu US$ 2 milhões e tentou se unir a dois bancos brasileiros para entrar no leilão. Conversou com o Unibanco. Deu em nada. Sentou-se com o Safra. Novamente em vão, e acabou desistindo do leilão. O BankBoston consumiu US$ 1 milhão antes de abandonar o barco. Depois de comprar três bancos estatais nos últimos anos, o Itaú fez as contas e concluiu que tinha cacife suficiente, cerca de R$ 9 bilhões em títulos públicos, para levar o Banespa e, de quebra, um outro banco menor. Vale a pena tanto esforço para ficar com o banco paulista? Nas próximas páginas, você poderá avaliar as virtudes e os defeitos do Banespa, e concluir se o valor da instituição está mais para os R$ 5,8 bilhões da estimativa oficial ou para os R$ 11 bilhões defendidos pelos sindicatos que se opõem à privatização.
… BANESPA
A corrida pelo cofre bilionário chega à reta final. Conheça
as entranhas do grande negócio do ano
Ernesto Bernardes, Joaquim Castanheira e Lucia Kassai
Nunca mais o sistema financeiro brasileiro será o mesmo, depois da privatização do Banespa. A venda do banco gerará o maior negócio de todos os tempos no mundo empresarial do País, seja qual for o volume de dinheiro a ser desembolsado pelo vencedor do leilão ? os R$ 1,8 bilhão do preço mínimo, os R$ 9 bilhões previstos por alguns analistas ou até os R$ 11 bilhões como pleiteiam os sindicatos. Quem chegar na frente nessa corrida de gigantes alimentará seus ativos em quase R$ 30 bilhões, acrescentará outros 1.326 endereços à sua rede de agências e postos de serviço e incorporará uma carteira de 3 milhões de clientes. O resultado, qualquer que seja, alterará profundamente o ranking de bancos e o tabuleiro financeiro do País. O novo controlador dará um passo decisivo para conquistar a economia de escala necessária num setor cada vez mais competitivo. Os perdedores vão correr atrás de formas de compensar a vantagem adquirida pelo concorrente. ?A história do setor financeiro brasileiro se dividirá em antes do Banespa e depois do Banespa?, diz Rafael Guedes, da diretor da Fitch Ratings, empresa de classificação de riscos.
Por isso, os maiores bancos brasileiros entraram no páreo. Entre Bradesco, Itaú e Unibanco, ficava a disputa mais acirrada. Bolões feitos por profissionais do mercado financeiro davam favoritismo ao Bradesco, na proporção de 3 para 1. A decisão ocorreria no leilão marcado para a segunda-feira, 7, na Bolsa do Rio de Janeiro. Mas os adversários da privatização procuravam bombardeá-lo até o último momento com uma série de liminares. Vencida essa etapa, o vencedor se tornará controlador de uma instituição que, ao longo dos últimos anos, foi considerada uma caixa-preta por diversos analistas do mercado. Há realmente nós a desatar e mistérios a desvendar, mas uma viagem pelos números e corredores do bancão paulista revelou para a maioria dos pretendentes uma noiva com mais atributos do que defeitos.
Quem levar as chaves vai encontrar um cofre fornido. O Banespa é puro caixa. O índice da Basiléia, empregado para medir a liquidez, verifica quanto dinheiro um banco tem condições de utilizar imediatamente em relação ao seu patrimônio líquido. O número aceitável é 11%. O Banespa tem 29,5%, acima da média de seus concorrentes brasileiros. Enfim, estão sobrando reais e mais reais para fazer empréstimos, sem se expor a riscos. ?Há potencial para dobrar a carteira de crédito em 3 a 4 anos, sem aumento da inadimplência?, diz um diretor do Banespa. Faça as contas: atualmente sua carteira de crédito acumula quase R$ 5 bilhões, com uma inadimplência inferior a 2%. É o resultado de uma limpeza feita nos últimos anos. Antigamente, 90% do volume de crédito era destinado ao setor público. Hoje, as empresas privadas representam 98% do dinheiro emprestado. Uma boa escarafunchada nesse departamento revela uma das jóias da coroa do Banespa: a carteira de crédito agrícola, de quase R$ 700 milhões. No Brasil, só o Banco do Brasil está à sua frente. O valor médio de empréstimo está por volta de R$ 60 mil, o que reduz os riscos e a inadimplência ? hoje apenas 0,5% apresenta atrasos no pagamento. Além disso, o agricultor torna-se fiel ao banco que lhe empresta dinheiro para plantar e colher a safra. ?Temos gente que é correntista há 50 anos?, diz um executivo do banco. ?Mas, apesar do relacionamento próximo, nem sempre esse tipo de cliente gera outros negócios.?
Está aí uma aparente carência do Banespa, não é? Em termos. ?O principal filão a ser explorado pelo novo dono será a oferta de novos produtos aos correntistas?, diz um banqueiro, que acompanha de perto o processo de privatização. Hoje a receita de serviços do Banespa é de R$ 263 milhões anuais, ou seja, R$ 97 por cliente. O Bradesco, cuja clientela é o povão, arrecada R$ 147 por cliente nesse mesmo item. O Itaú, R$ 197.
Para qualquer lado que se olhe nesse campo, há espaço para crescer. Dos 3 milhões de correntistas, apenas 1,4 milhão possuem cheque especial. Possuem, mas não usam ? ou usam pouco. Cada um deles utiliza em média um quarto de seu limite, 50% abaixo da média brasileira. São números tímidos para quem tem muito dinheiro para emprestar e milhares de funcionários públicos, com estabilidade no emprego garantida, como clientes. O mesmo mal aflige o setor de cartões de crédito. O banco tem apenas 880 mil unidades, o equivalente a 30% de sua carteira de clientes. No Bradesco, por exemplo, essa proporção é de 40%.
Para analistas, esse quadro revela alguns traços do perfil dos empregados do Banespa e de sua cultura empresarial: pouca disposição de correr riscos, postura conservadora em excesso e pouca disposição para vendas. Trata-se de venenos letais em um mercado de competição acirrada como o financeiro. Parte da explicação pode ser encontrada em uma análise cuidadosa do quadro de funcionários do banco. Dos pouco mais de 21 mil empregados, cerca de um terço possui mais de 20 anos de casa. Outros 12.500 trabalham lá de 10 a 20 anos. O último concurso público foi realizado há mais de 15 anos. Mesmo a formação acadêmica do pessoal é discutível. Apenas um funcionário possui doutorado. Doze têm diploma de mestrado. ?Falta sangue novo e oxigenação em uma estrutura desse tipo, seja pelo longo tempo de serviço, seja pela ausência de reciclagem profissional?, diz um consultor de recursos humanos, que prefere não se identificar. Segundo ele, a receita ideal é a do ?empurra-segura?, aquela que concilia o arrojo do mais jovem com a ponderação do mais experiente. ?Nesse caso, há um claro desequilíbrio na balança?, afirma.
Taí o principal vespeiro onde o vencedor do leilão terá de colocar a mão. Todos os pretendentes consideram o quadro de funcionários inchado, sem preparação adequada e, principalmente, caro. Um caixa do Itaú ganha cerca de R$ 800 mensais. Seu colega no Banespa recebe R$ 2.000. A cada 5 anos, o funcionário do Banespa é premiado com 30 dias de licença, que pode ser substituída pelo equivalente em dinheiro. Nesse mesmo período, ele também recebe um adicional de 5% a 10% no salário, independentemente de seu desempenho. Por conta disso, o custo mensal por empregado atinge mais de R$ 4,5 mil. De acordo com estudo da Andersen Consulting, nos bancos privados o valor cai pela metade.
No capítulo de pessoal, há outros candidatos a micos. O passivo trabalhista, por exemplo. De acordo com o relatório de avaliação do Banco Fator, utilizado para a definição do preço mínimo, elas estariam na casa de R$ 800 milhões. Os concorrentes temem que o valor esteja subestimado, já que não conhecem em detalhes os processos trabalhistas em andamento. Os funcionários também recebem gratificações semestrais equivalentes a 5% do salário. Outro fantasma que assombra: o passivo previdenciário de R$ 3,9 bilhões, segundo o Fator. Essa fortuna está provisionada no balanço, mas há uma arenga em torno de uma certa taxa de remuneração. É um tecnicismo, mas pode significar centenas de milhões de reais. Por conta disso tudo, em seus estudos, os candidatos prevêem corte substancial de pessoal, embora não admitam isso em público. As estimativas indicam que 40% a 50% dos funcionários podem ser dispensados. Vai custar um dinheirão. Um acordo entre a comissão de privatização e o sindicato dos bancários determina que, em caso de demissão, o funcionário receberá uma indenização de um a três salários, dependendo do tempo de casa, além das indenizações legais, como a multa de 40% do FGTS.
Com esse clima, evidentemente os novos donos não serão recebidos com tapete vermelho em sua chegada ao Banespa. As resistências provavelmente começarão no dia seguinte à venda. O sinal mais claro do descontentamento são as 62 liminares que adiaram diversas vezes a privatização. Ainda na sexta-feira, 17, três dias antes da data marcada para o leilão, o advogado do sindicato dos bancários de São Paulo, João Piza, avisava: ?Por enquanto, não consideramos sequer a possibilidade de privatização. Vamos impedi-la?, afirmou ele. ?Já colocamos os estrangeiros para correr. Agora, só faltam os brasileiros.? Era uma referência à desistência dos bancos BBVA, HSBC, Citibank e BankBoston. Mas e se o leilão acontecer? ?A luta continua. Vamos anulá-la na Justiça?, disse.
Piza não é o primeiro a pensar nisso. Há dois anos, uma ação popular do ex-governador Orestes Quércia pedia a devolução do Banespa ao governo do Estado de São Paulo. Até hoje não houve julgamento. Mas caso seja julgada procedente, o banco voltaria para as mãos do Estado, o que geraria uma interminável batalha jurídica envolvendo governos, o banco comprador e Banco Central. São esqueletos que podem surgir, assim que o novo controlador comece a abrir as portas dos armários ? insuficientes, porém, para reduzir a atratividade do Banespa para os grandes bancos brasileiros. Quem levar o banco ganha uma marca fortíssima que nem mesmo os problemas dos últimos anos foram capazes de comprometer seriamente. Há também uma clientela fiel. O Banespa tem presença forte junto a alguns grupos específicos. Só os dekasseguis, descendentes de japoneses que vivem e trabalham no Japão, possuem cerca de US$ 100 milhões depositados no banco. Parte dos demais correntistas são titulares das chamadas contas-salário, aquelas onde o empregador deposita o dinheiro nosso de cada mês. É um filão perseguido por todas as instituições do mercado. No caso do Banespa, são quase 900 mil contas-salário de funcionários públicos estaduais. O edital do leilão garante a permanência delas no banco até o final de 2007. Hoje elas representam uma entrada mensal de R$ 900 milhões. Outras 350 mil contas-salário pertencem a servidores municipais. Nada impede que elas deixem o Banespa. A Nossa Caixa, que após o leilão passa a ser único banco estadual de São Paulo, já prepara uma ofensiva para convencer os prefeitos a migrarem para suas agências. Para manter essas contas, o Banespa terá de sair atrás dos clientes e convencê-los de que é melhor. Ou seja, jogar o jogo do mercado ? e aí está o grande desafio do novo controlador, protagonista de um dos maiores negócios de todos os tempos no Brasil.
O palco para o grande espetáculo já está armado. A Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ), a Polícia Militar e as redes de televisão prepararam a arena para receber os candidatos à compra do Banespa. Haverá 160 pessoas trabalhando no leilão, sob o comando do superintendente da bolsa, Sérgio Berardi. Além delas, serão mais 800 convidados credenciados ? 450 ligados aos bancos e 350 jornalistas. ?Desde o início do processo de privatização, em 1990, já fizemos cerca de 120 leilões. A estrutura será semelhante à do leilão do sistema Telebrás?, compara Berardi. O executivo não revela quanto gastou na organização, mas a remuneração está no edital. A bolsa vai embolsar 0,025% do valor pago do lance vencedor.
A polícia não espera confusão em frente ao prédio. É que no dia do leilão comemora-se no Rio o feriado de Zumbi dos Palmares. Por isso, a PM reduziu o contingente ? levará 1.200 homens, contra os 1.800 inicialmente previstos. De qualquer maneira, haverá um posto médico, com UTI móvel, instalado do lado de fora do prédio da Bolsa. O leilão tem início previsto para as 10 horas, com o leiloeiro Alexandre Runte lendo as regras do edital. Em seguida, anuncia os nomes dos grupos financeiros pré-identificados e as respectivas corretoras que os representam. O prazo para assegurar a participação terminou na sexta-feira, às 18 horas, horário limite para depositar as garantias financeiras.
Na próxima etapa, Runte abrirá um a um os envelopes com as propostas, conforme a ordem de entrega. O ganhador será anunciado caso nenhuma outra proposta atinja 80% do maior lance. Se uma das ofertas for igual ou maior a esse valor, o leilão entra na segunda fase com a disputa de repique a viva-voz. Exemplo: se a maior oferta for R$ 2 bilhões, quem apresentar proposta igual ou acima de R$ 1,6 bilhão participa da etapa seguinte. Nesse momento, a formalidade dá espaço à emoção. Os executivos dos bancos estarão numa área cercada no meio do pregão e terão cerca de dez minutos para conversar e montar suas estratégias. As ordens serão dadas aos operadores das corretoras, que repassarão as informações ao leiloeiro. Nessa etapa, o lance mínimo será o valor da maior oferta feita na primeira fase. Terminada a disputa, resta ao vencedor correr para o abraço. As ações na Justiça poderão atrasar o leilão em minutos, horas, dias ou meses. Segundo o presidente da BVRJ, Carlos Reis, a Bolsa estará preparada para iniciar o leilão até as 19 horas do dia 20, caso alguma liminar judicial atrase o processo. Para se prevenir, o governo montou um exército de 72 advogados.