22/12/2004 - 8:00
Na manhã da quarta-feira 15, o vice-presidente da República e ministro da Defesa José Alencar entrou em seu gabinete com o semblante fechado. O habitual sorriso escancarado fora substituído por uma expressão carregada, tensa. À sua espera estava um grupo de parlamentares gaúchos. O principal motivo da visita era uma declaração feita no dia anterior pelo presidente da Infraero, Carlos Wilson, anunciando a intervenção na Varig para os próximos dias. Alencar estava ali para apagar o incêndio. Na frente de todos, Wilson tomou um pito. Ele fora convocado para discutir a situação da Varig com os deputados. Não abriu a boca. Alencar afirmou que nada estava decidido, não haveria estatização e que a ?solução para a Varig é voar?. Depois repetiu tudo à imprensa. Por último, ligou para o presidente da companhia Carlos Luiz Martins e esclareceu o ocorrido.
Estava assim desmontada aquela que seria a maior operação de intervenção governamental na história do setor aéreo do País. Entre a declaração de Wilson, feita numa solenidade no Aeroporto de Manaus, e a negativa de Alencar, a situação havia mudado radicalmente. Na tarde da terça-feira, o Superior Tribunal de Justiça concedeu indenização à Varig como compensação pelas perdas provocadas pelo controle de preços durante a década de 80. Coisa de R$ 2,3 bilhões. O governo ainda pode recorrer, mas, segundo juristas, dificilmente reverterá a decisão. Ou seja, a qualquer momento, a Varig poderá colocar a mão numa dinheirama que mudará o quadro da companhia, embora não a deixe saneada.
A intervenção oficial foi mais uma proposta na novela de salvamento da Varig. A decisão nos tribunais dá um refresco à empresa, mas ainda não há resposta que definirá o final dessa história. Quem assumirá o comando da maior companhia aérea do País? A quem caberá desenhar o futuro de um ícone do empresariado nacional? As respostas podem estar na mesa do vice Alencar. Existem ali pelo menos três propostas. Uma delas está sendo costurada com a ajuda do consultor Antoninho Marmo Trevisan. Trevisan conta com a confiança tanto da atual direção da Varig quanto dos ministros Luís Gushiken e José Dirceu, o dono da palavra final no caso Varig. A idéia consiste basicamente em promover uma estatização temporária da companhia para posterior revenda no mercado. Primeiro, os credores converteriam seus créditos em participações acionárias da companhia. Há uma facilidade nessa proposta. O governo é o principal credor. A Varig lhe deve US$ 1 bilhão em impostos atrasados. Outros US$ 88 milhões estão pendurados na Infraero e na Petrobras. Os principais credores privados são a GE e a Boeing.
Numa segunda etapa, a nova direção reestruturaria a empresa. O Grupo Varig tem hoje 17 mil funcionários, o mesmo dos tempos em que controlava dois terços do mercado. Só que hoje sua fatia não ultrapassa um terço. Podem ser cortados de 4 mil a 6 mil funcionários. Depois de saneada, o governo sairia à caça de um novo comandante para a Varig. Nada sairá do papel sem o sinal verde da Fundação Rubem Berta, a controladora da Varig, e até hoje a grande barreira para a concretização dos planos de salvamento já apresentados. ?Aceitamos perder o controle?, disse à DINHEIRO Carlos Luiz Martins, presidente da Varig. Poucas vezes nos últimos anos um comandante da companhia pôde falar com tanta autoridade. Isso porque há muito tempo a Fundação não apresenta tanto poder de barganha como agora. Por dois motivos. Primeiro: seu cofre está virtualmente forrado com os R$ 2,3 bilhões ganhos na Justiça. Segundo: a Varig hoje opera no azul. Nos nove primeiros meses deste ano, o lucro operacional bateu em R$ 123 milhões, mas, corroído por uma dívida de R$ 5,6 bilhões, transformou-se em um prejuízo líquido de R$ 300 milhões. ?Estávamos com água no nariz. Agora, estamos com ela no pescoço?, afirma um ativo membro da Fundação. ?Se ninguém fizer marola, teremos fôlego para negociar uma saída.?
Essa melhora permitiu o surgimento de um segundo plano, elaborado em conjunto pela bancada gaúcha no Congresso, o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto, e as associações de funcionários da Varig. Nele tudo começa com a intervenção da empresa e a implantação de um plano de saneamento similar ao Proer dos bancos, no qual a conta, em última instância, ficará com o consumidor. ?É o Proar?, resume a deputada Yeda Crusius, coordenadora do grupo. A diferença é que os empregos seriam mantidos.
Há um terceiro plano em gestação, elaborado pelo comandante Martins e defendido pelas direções da CUT, da Força Sindical e do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas. Consiste basicamente em dar condições para que a Fundação Ruben Berta saia sozinha do sufoco, sem precisar de intervenção, novos sócios ou Proar. Como? Primeiro, o ministro Antônio Palocci precisa tirar da gaveta uma decisão tomada há 14 meses de reduzir de 35% para 7,5% a carga tributária do setor aéreo. Só aí a Varig economizaria US$ 67 milhões ao ano. O Planalto também precisaria obrigar a Petrobras a alinhar o preço do combustível de aviação com o mercado internacional. Hoje o querosene custa US$ 0,29 em Nova York e US$ 0,43 em São Paulo. Com essa medida, a economia da Varig seria de mais US$ 60 milhões. Por fim, a Varig quer que o BNDES faça um empréstimo de US$ 75 milhões para a renovação da frota. A economia com combustível e manutenção seria de mais US$ 50 milhões. O problema é que a empresa não tem garantias a oferecer.
O que parece enterrado é a intervenção na empresa, que por pouco não ganhou vida na semana passada. A idéia seria decretar a liquidação da companhia e dividir o mercado entre TAM e Gol. O desenho da operação surgiu há três meses no Ministério da Fazenda, e foi incorporada pelo então ministro da Defesa José Viegas. Ao assumir o ministério, Alencar recebeu do antecessor uma pasta com uma série de idéias sobre a reestruturação do setor aéreo. Em cima da pilha, a minuta de uma Medida Provisória criando o Regime de Administração Especial Temporária (Raet) para a Aviação Civil, igual ao Raet do Proer. Há três semanas, Alencar começou a discutir essa MP com o mercado.
Primeiro chamou a presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Graziella Bagio. Ela é amiga pessoal de Lula dos tempos do ABC. Freqüenta há 20 anos a cozinha do apartamento do presidente em São Bernardo. Nas últimas semanas, Graziella já esteve com Lula três vezes e outras três com Alencar. Ao ouvir o boato sobre a MP, correu ao Planalto. ?Estão falando de uma Medida Provisória para intervir na Varig. Você já assinou ou vai assinar??, perguntou Graziella. ?Amanhã o José Alencar vai te receber?, desconversou Lula. Segundo Graziella, Alencar lhe mostrou a minuta da MP. ?É um absurdo!?, esbravejou. ?Estávamos tratando de salvar a empresa, não de liquidar com tudo.? Foi Graziela quem deu o alarme à direção da Varig. ?Saí do Alencar chutando o pau da barraca?, disse ela à DINHEIRO. A partir daí, empresa, empregados e parlamentares se mobilizaram.
Pelo lado do governo, coube ao presidente da Infraero, Carlos Wilson, tentar acelerar o processo de intervenção. Telefonou para uma dúzia de ministros e foi a Porto Alegre almoçar com o governador Germano Rigotto e o prefeito eleito de Porto Alegre José Fogaça. Rigotto concordou com a necessidade de intervir na companhia e afastar a Fundação da direção. Mas não gostou da idéia de fatiar as linhas da Varig entre TAM e Gol. Em Brasília, Alencar começou a tentar viabilizar o plano junto ao mercado. ?É esse o plano que tenho e se não tiver nada melhor é esse que o governo vai aplicar?, disse Alencar ao comandante Martins. Há duas semanas, convocou os presidentes da TAM, Marco Bologna, e da Gol, Constantino Jr., em conversas separadas. Alencar queria que as duas companhias ficassem com um passivo de US$ 324 milhões da Varig com o fundo de pensão Aeros, e garantisse o emprego dos 17 mil funcionários. Bologna recusou o projeto. Constantino também não gostou.
Na manhã de terça-feira 14, Alencar convocou novamente Bologna e Constantino. Desta vez juntos. ?O problema da sucessão das dívidas não incentiva as empresas a investir na nova Varig?, admitiu Alencar. ?Mas peço que vocês analisem melhor a proposta.? Naquele momento, o presidente Lula voava para Manaus ao lado de Carlos Wilson. Passaram três horas conversando. Ao descer do avião, Wilson anunciou que o governo faria a intervenção até o final da semana. Duas horas depois, o jogo viraria, quando o STJ deu ganho de causa à Varig. Imediatamente uma crise começou a tomar forma no Planalto. O primeiro embate ocorreu entre José Dirceu e o advogado geral da União, Álvaro Ribeiro Costa. Costa insiste em recorrer ao Supremo, protelando o pagamento. Dirceu quer resolver o problema o mais rápido possível, para que o assunto não ganhe destaque na campanha presidencial daqui a dois anos. Também não gostou do freio imposto por José Alencar. Nisso contou com o apoio do chefe dos dois, o presidente Lula. Quando Lula convidou o vice para assumir a pasta da Defesa, deixou claro. ?Trate o assunto como prioridade absoluta?, disse. Dirceu defende o que chama de ?solução de Estado?, envolvendo os três Poderes. O Judiciário já fez sua parte concedendo o crédito de R$ 2,3 bilhões. Ao Congresso caberia aprovar a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Sob o patrocínio de Dirceu, as lideranças do governo e da oposição já acertaram embutir no projeto duas emendas que resolverão em boa parte a crise na Varig ? e também na Vasp. Na primeira, dá ao ministro da Defesa o direito de fazer um encontro de contas entre créditos e dívidas com o governo. Além disso, as áreas que abrigam escritórios, hangares e terminais de carga, hoje da Infraero, serão repassadas às empresas. O direito real de uso possibilitará um acerto no balanço das companhias de R$ 1 bilhão. Assim, um empréstimo do BNDES seria mais viável.
Nessa solução de Estado, o governo ficaria com a responsabilidade de arrumar o plano de salvação para a Varig. A Fundação seria defenestrada do comando da empresa antes do BNDES conceder crédito extra. Dirceu apóia a intervenção, mas não gosta da idéia de estatização da Varig. A resistência a tal roteiro vem do Ministério da Fazenda, onde Antônio Palocci defende a clássica solução de mercado. Saiu de seu gabinete a Medida Provisória prevendo a intervenção e liquidação da empresa. Fora de Brasília, há outra profusão de interesses. No centro do problema estão os sete homens que compõem o Conselho Curador da Fundação Rubem Berta. Há um ano e meio, emergiu ao poder o grupo liderado pelo comandante Luiz Martins, piloto com 35 anos de casa. A FRB é presidida por um discreto aliado de Martins, o engenheiro de manutenção Ernesto Fazolin Zanata. Todo o processo de negociação com o governo e os credores está concentrado em Martins.
Não há muito tempo para se tomar a decisão. A próxima turbulência está prevista para abril, na baixa temporada, quando vencem papagaios milionários. A maioria das dívidas foi renegociada, mas em condições duras ? e ninguém sabe até quando a Varig conseguirá honrá-las, a exemplo do que aconteceu com a Infraero (o débito de US$ 68 milhões foi renegociado em 30 meses, mas as parcelas deste ano estão em atraso). Na quinta-feira 16, a estatal entrou na Justiça para cobrar o crédito. Poucos acreditam que neste momento a Varig esteja fadada ao desaparecimento. É quase certo que ela sobreviva ? só não se sabe nas mãos de quem.
R$ 5,6 bilhões é a dívida total da companhia. O PARCERIA |