Há uma dúzia de palavras idênticas em todas as línguas da Terra e conhecidas de todos, do camponês chileno ao operário japonês, do citadino inglês ao montanhês afegão. Entre essas palavras estão ?táxi?, ?rádio?, ?Coca-Cola? e… ?Kalachnikov?. A jornalista francesa Eléna Joly, autora do livro Rajadas da história ? o Fuzil AK-47 da Rússia de Stálin até hoje, recém-lançado no Brasil, vai direto ao ponto ao tratar da lendária arma. Pelo menos 80 milhões de unidades foram produzidos desde sua criação, pelas mãos de Mikhail Timofeievitch Kalachnikov, comunista de carteirinha, exilado com a família na Sibéria nos anos 1930, deputado soviete e hoje um senhor de cabelos brancos. A obra de Joly ajuda a compreender a trajetória de um homem especial ? mas sobretudo permite contar um pedaço da história econômica do século XX por meio de um de seus mais tristes símbolos.

O AK-47 (AK como iniciais de Avtomat Kalachnikova e 47 pelo ano) é um tiro seco na evolução das economias socialista e capitalista ao longo dos tempos. Kalachnikov nunca patenteou a arma, cujo projeto foi cedido gratuitamente aos países satélites da União Soviética. Este mercado de armas pequenas gira US$ 7,4 bilhões anuais, e é atavicamente contrário a inovações. O avesso de Kalachnikov, o americano Eugene Stoner, pai do M-16 americano, morreu desconhecido mas bilionário, ao receber direitos por cada uma das 40 milhões de metralhadoras vendidas. Nos anos 60, AK-47 e M-16 eram como os Beatles e os Rolling Stones. Os rapazes amavam um ou outro, rá-tá-tá-tá… Do ponto de vista do marketing, o dinossauro soviético perdeu a parada: virou mito mas terminará seus dias com pouco dinheiro. Recentemente, uma empresa alemã pagou-lhe para produzir vodcas, canetas e isqueiros com a marca Kalachnikov ? até agora, apenas a bebida chegou ao mercado, e fracassou.

O inventor vive atualmente em Ijévsk, cidade perdida no fundo dos Urais. Aos 85 anos, é um daqueles sujeitos de feições rudes e olhos puxados. Tem a pinta dos velhos líderes da finada URSS. Suas idéias sobreviveram às mudanças políticas, à queda do Muro de Berlim. Soam fora do lugar, mas são coerentes e leais a quem o ajudou a virar lenda. Stálin? ?Considero Stálin um dos grandes líderes nacionais do século XX, além de um grande chefe de exército?, diz. Gorbachev? ?Gorbachev condecorou-me, mas isso não me impede de detestá-lo profundamente pelo mal que fez a nosso país ao permitir a queda da URSS?. Firme como um rochedo, apesar de levemente surdo, não vacila nem quando é indagado a respeito da mais recente imagem do AK-47, que deixou os ombros dos guerrilheiros vietcongues, nos românticos anos 1960, para aparecer ao lado de Bin Laden, o paradigma do terror. ?Espero que eu permaneça na memória das pessoas como aquele que criou uma arma para defender as fronteiras de seu país, e não a arma dos terroristas.?